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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

15
Jul20

Uma Rosa que é parte de mim.

shark

Deixem-me falar-vos da minha avó Rosa.

A minha avó, neste caso materna, é a minha principal referência familiar. Alfacinha como eu, viveu numa época ainda mais complicada para quem não nascia em berço de ouro. Pobre e mulher, só lhe faltou uma cor de pele menos favorável para lhe piorar a condição de portuguesa daquele tempo hostil.

Contudo, os cruzamentos da vida, sem semáforos ou qualquer outro tipo de sinalização, apanharam-na desprevenida e o acidente chamava-se Henrique e viria a ser o meu avô. Era uma adolescente sem qualquer experiência de vida ou formação escolar quando aquele homem bonito, galanteador, mas igualmente casado e com um filho e uma mulher noutro lado qualquer, a abalroou no caminho.

Três filhas, a primeira das quais viria a ser a minha mãe, brotaram daquela relação clandestina, daquela vida que para ele era paralela. Mas para ela era a única que queria e sabia viver.

 

Durante alguns anos, a minha avó viveu feliz com o único homem que conhecia e, afirmo-o eu, o único que algum dia amou. Fazia sentir-me o seu neto preferido, quase como um filho por ela apetecido e que lhe rasgava no rosto de morena bonita o sorriso que raramente a vida lhe suscitou.

Sobretudo depois do dia em que ele a deixou, fugido para outro sítio qualquer, de outro sarilho dos seus. Sem meios de subsistência, com um estatuto social medonho à época (anos 50) e com três filhas nos braços para criar.

Pouco espaço de manobra o meu avô deixou de si para, de alguma forma, o homenagear. Tudo aquilo que foi resumiu-se para mim na condição de neto bastardo de uma figura distante da qual pouco se falava e que só viria a conhecer a poucos meses do fim.

Mas não é ele o protagonista desta história.

 

A minha avó, de quem agora vos falo, era uma Senhora e era também uma heroína por ter sido capaz de, no meio do desgosto para a vida que sofreu, e com a ajuda dos poucos que, naquele tempo, ultrapassaram o preconceito e não lhe ofereceram apenas a rejeição, criar a prole que sobrou do seu amor que desertou. Ela não era casada e tinha três filhas, algo que no seu tempo a sociedade não se permitia perdoar.

Apenas depois de criada a mais nova das filhas, a minha avó permitiu-se escapar ao viveiro de recordações, as boas e escassas como as más, imensas, que a amarravam a algo de que pretendia libertar-se. Mudou, sozinha, para uma localidade a mais de 20km de Lisboa, para recomeçar do zero, para poder construir de si uma imagem livre dos condicionalismos que a vida passada lhe impunha, do rótulo que, de forma mais ou menos discreta, a sociedade do seu tempo lhe colava, para poder ser a pessoa que nunca lhe fora permitida até então.

A minha avó, de origens absolutamente urbanas, criava coelhos e galinhas no quintal da sua casa ribatejana, em cujas redondezas acabaria por encontrar um homem simples, com uns olhos de um azul muito claro, enormes, que a tornou no seu objecto de devoção numa relação descaradamente desequilibrada. A minha avó, desencantada, não conseguia disfarçar a desproporção emocional. Mas ele sorria e aceitava-a tal e qual e assim morreria, com uma cirrose a fazer-lhe pagar o preço do apego à bebida que nem ela conseguiu impedir.

A minha avó não era muito de sorrir, mas a mim nunca negava aquele brilho que muito se notava quando me tinha perto de si. Como uma senhora era tratada pela vizinhança nos seus últimos anos, que a avaliava pelo que lhe era dado a conhecer, pela pessoa que ela era, de facto, e não pela força das circunstâncias no caminho penoso que lhe coube percorrer até sentir cumprida a sua principal missão, a obrigação a dois que foi forçada a abraçar como só sua, ainda jovem, aquela luta desigual contra o destino batoteiro que só a espaços lhe permitiu sentir-se genuinamente feliz.

Este resumo que vos deixo, é a tradução da imagem que conservo de uma mulher que me serviu de exemplo em muitos aspectos da educação da minha filha e da forma de como a minha maior fixação foi sempre a de lhe incutir uma sede de independência, uma vontade de vencer pelo seu mérito, pelo seu esforço, e de jamais depender seja de quem for, nomeadamente em termos financeiros. Para nunca precisar de se provar uma mulher de armas perante as mesmas adversidades que a sua bisavó enfrentou.

Era uma pessoa muito digna, uma doce fortaleza, esta avó que partiu quase com a mesma idade que tenho hoje e cuja saudade me enche os olhos de lágrimas, a par do orgulho que sinto por ter partilhado parte da mesma herança genética da pessoa que tento dar-vos a conhecer, para que possam entender o porquê de, acima de tudo, ambicionar ser uma pessoa de quem alguém como ela se possa orgulhar tanto como o seu rasto me permitirá senti-la até ao dia do meu fim.

rosa.jpeg

(Foto Shark)

 

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