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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

16
Out16

A parceria

shark

O sem-abrigo acordou com o pressentimento da presença do outro e de imediato rosnou o seu direito de propriedade, ou de ocupação, daquele espaço público mais abrigado que o outro parecia querer reclamar. Ou pelo menos o sem-abrigo assim o temia, calejado pela vida nas ruas que ao relento funcionava como a selva nas suas leis.

Ficaram assim por uns instantes, a entreolharem-se com desconfiança, sentidos bem alerta para qualquer movimento brusco que denunciasse uma má intenção. O sem-abrigo resmungava impropérios contra a vida em geral enquanto o outro apenas rosnava a sua perspectiva similar. Depois calaram-se de novo, saturados ambos daquele desconforto absurdo que se somava ao que já evidenciavam sentir.

Esfomeado, o sem-abrigo procurou no seu saco de recolha de tesouros uma solução. Restos que a civilização lhe proporcionava de entre os excessos que as circunstâncias lhe negaram algures num passado que preferia nem recordar, refugiado numa loucura própria dos seres humanos tombados na sua condição, alienado na luta por algo tão simples como um pouso mais sossegado para dormir.

Antes da primeira garfada no conteúdo do recipiente imundo que conseguira, há horas de sorte, encher na clandestinidade das traseiras de um restaurante gerido por gente de bem, reparou que o outro continuava ali, de olhos postos no repasto. O sem-abrigo identificou de imediato aquela expressão, a sua de tantos dias menos felizes na busca do sustento para mais um dia por viver. O outro já não rosnava, apenas contemplava à distância, pose entristecida, aquele recipiente mágico que lhe parecia uma cartola com coelho à caçadora pronto a saltar para o seu estômago dorido pela sensação quase permanente de vazio.

O sem-abrigo engoliu em seco, atordoado pela sua reacção, apanhado de surpresa por uma emoção que julgava enterrada na mesma sepultura do passado que recusava lembrar. Deu consigo a procurar no velho saco a tampa de uma lata que servia para o efeito na perfeição.

Dividiu a meio a ração disponível e aproximou do outro a metade que lhe oferecia enquanto refilava entre dentes contra si mesmo aquele assomo de generosidade que há muito não experimentava. O outro, receoso mas numa ansiedade indisfarçável, avançava centímetro a centímetro para o alvo da sua cobiça, desconfiado, esfomeado, desesperado pela confiança urgente de sentir naquele instante em que precisava avaliar o risco a ser assumido. O sem-abrigo já comia e olhava de soslaio para o outro, acabando por lhe fazer sinal para avançar com uma mão. E o outro avançou e partilhou com ele aquela refeição magnífica, visivelmente grato pelo gesto e pela companhia.

 

Seria, de resto, esta última que os uniu quando descobriram ambos que já não lhes doíam tanto o abandono e a solidão.

 

homeless and dog.jpg

 

13
Fev15

À espera de um final feliz

shark

O figurante que aguarda impaciente o momento de pronunciar as três palavras que lhe atribuíram no guião. Que tenta concentrar a sua atenção no cenário enquanto se apercebe, visão periférica, do muito de importante que acontece nos bastidores. Encostado a um muro acabado de erguer, por detrás um mundo secreto onde possa esconder a sua frustração pelo cariz secundário da sua intervenção a fingir-se protagonista. Assiste impotente aos ensaios entre os actores e actrizes principais e quase se sente a mais no meio da pequena multidão que prende quase toda a atenção disponível. Recita mentalmente as três palavras decoradas que são palavras entre pessoas amadas e por isso se sente tão embrenhado no seu papel. O falso protagonista em si, na convicção. Mas quando o realizador grita “acção!” o figurante fica de fora nas cenas mais divertidas, nos diálogos entre pessoas tão amigas que quase parecem sentir o amor construído aos poucos no bastidor onde são pessoas de verdade e algures a amizade evoluiu por outros canais de comunicação. O cinema da emoção genuína, o apelo da proximidade estampado na retina e as câmaras encantadas a filmarem magia a acontecer e o figurante sempre a ver, encostado a um muro acabado de erguer por dentro também. Coração aos saltos para a falsa partida, a acção acaba cortada por causa de uma distracção qualquer da actriz principal. Take dois e outros se seguirão, o figurante com o adereço na mão para lhe entregar no momento de revelar à personagem, a ela também, o porquê da sua insistência em fazer parte de tal filme. Razões que o argumento não prevê, mas são as suas. Os holofotes apontados noutra direcção, o figurante com o adereço na mão para entregar à sua amada na película, a actriz principal concentrada afinal num piscar de olho discreto lançado por ela e retribuído pelo admirador secreto que se veste na circunstância de actor principal e a cena fica estragada outra vez. O adiamento confirmado e o figurante outra vez desolado por passar os dias como simples espectador de uma amizade travestida de amor, marcada pela extrema confiança, pela absoluta segurança no actor principal cuja ausência reclama sem exigir a presença só para evitar confusões. O papel não exige grande esforço nas representações e por isso os descuidos insistem em acontecer. Instintivos, impulsivos, descarados, assumidos como outra coisa qualquer. A actriz faz de mulher e o figurante aguarda a pergunta a cuja resposta se resume a sua intervenção. O realizador grita “acção!” e ela avança e pergunta: - Porque insistes neste papel confrangedor? E ele, cobarde, camufla o amor e responde azedo e corrói a paixão conforme previsto pelo autor do guião, engole no orgulho as três palavras que diria noutras circunstâncias, “porque te amo” e responde desastrado como exige o papel: - Sou um imbecil. É isso que diz. E depois fica a assistir ao resto da filmagem, à espera de um final feliz.

12
Jun12

A MÁQUINA QUE NUNCA EXISTIU

shark

No laboratório número sete do recém-criado (num futuro não muito distante, vendo a coisa numa perspectiva cósmica) organismo público para a investigação científica um dedicado funcionário exultava de alegria quando finalmente o director do seu departamento o recebeu.

 

- Senhor Director (a maiúscula é só para enfatizar a reverência, não se faz nada ao calhas), venho comunicar-lhe o sucesso absoluto na concepção de uma máquina do tempo!

- Uma máquina do tempo? Ó Sousa, francamente…

 

O director, Dr. Teixeira de Almeida, parou por instantes para limpar os óculos no sentido de ver melhor o relatório de 450 páginas em triplicado, com o selo branco do ministério e a rubrica do director adjunto que o Sousa pousara ao lado da pen com a cópia digital autenticada pelo gabinete de supervisão e análise, enquanto contorcia o rosto num esgar de reprovação.

 

- Então você, Sousa, a saber das dificuldades que passamos por causa dos cortes orçamentais e anda a desperdiçar o seu tempo e os recursos do Estado a inventar engenhos perigosos? Você tem ideia da quantidade de papelada e de aprovações necessárias para viabilizar uma ideia destas?

- Mas ó Senhor Director, a Humanidade sempre sonhou com as viagens no tempo, talvez se consiga um apoio comunitário ou assim…

- Homem, você já viu o risco de viajar no tempo? Quanto é que ia custar o seguro, já pensou? Quer dizer, mandamos um funcionário público para o passado, ele altera sem querer os acontecimentos, muda-nos o presente todo e depois quem é que paga o prejuízo?

- O Senhor Director desculpe, queria só dizer que o projecto da máquina do tempo foi desenhado tendo em conta essa preocupação e por isso o equipamento só permite viajar no futuro, mesmo quando, na viagem de volta, regressamos ao passado que acontecerá sempre num ponto do tempo situado no futuro relativamente ao ponto de partida…

- É por estas e por outras, Sousa, que o meu amigo não progride na carreira com maior rapidez. As coisas têm que ser bem pensadas, não basta ter ideias mirabolantes e toca a andar para o progresso como se o mundo acabasse amanhã e o Sousa pudesse assistir hoje ao acontecimento. Lá por não arriscar o recuo no tempo e assim não poder alterar o rumo dos acontecimentos isso não quer dizer que haja maneira de garantir a segurança das pessoas e dos bens!

- Como assim, Senhor Director?

- Você tem ideia de quanto dinheiro e quantos postos de trabalho são gerados pelo Euromilhões, Sousa? Não tem, mas devia. No dia em que for possível viajar para o futuro quem é que vai dar emprego a essa gente toda no passado que é o nosso presente? E já pensou que entre os excêntricos beneficiados em sorteio com jackpot pode estar o filantropo que financiará os projectos futuros desta instituição? E os impostos que o Estado deixa de encaixar com essa brincadeira? Francamente, ó Sousa…

- O Senhor Director desculpe, acho que já percebi a ideia. Vou então desmantelar o aparelho e apagar os planos para termos mais espaço em memória.

- E veja lá, ó Sousa, se de futuro tem mais tino e aplica os recursos disponíveis em coisas que sejam do interesse público e que justifiquem os postos de trabalho aqui criados pelo país e que tanta falta fazem às pessoas.

 

No silêncio da pequena oficina de desmantelamento e reciclagem das criações consideradas inúteis ou obsoletas, o Sousa pousou por instantes a vista no equipamento que lhe competia destruir e pareceu hesitar.

No dia seguinte, o encarregado da manutenção e limpeza bateu à porta do CEO da WorldWide Inventions , Alberto Sousa, para lhe pedir uma substituição do detergente limpa-vidros:

 

- Somos uma empresa privada com accionistas à espera de dividendos, acha que se pode desperdiçar dinheiro em detergentes mais caros? Esse serve muito bem. Quer mais alguma coisa, Zé?

 

O colaborador deixou o luxuoso gabinete contrariado mas nem se atreveu a contestar, sobretudo quando não lhe saía da cabeça o nome da sua mulher, Ernestina Teixeira de Almeida, na carta de despedimento da papelaria onde trabalhava até ao dia em que, sem qualquer explicação, o euromilhões e todos os jogos, apostas e lotarias do planeta deixaram de existir. 

08
Dez11

O ÚLTIMO BASTIÃO

shark

No dia previsto voltaram a chamá-lo bem cedo para cumprir a sua função. Calhava-lhe sempre a mesma galáxia e o cargo que ocupava não permitia alternativas, competia-lhe assegurar a desinfestação dos planetas abandonados à pressa durante a devastadora guerra civil que alastrara às colónias distantes e tornara para si inabitáveis esses calhaus no espaço que tanto amaldiçoava, depois de infestados de formas de vida estranhas, aberrações como as entendia, nascidas do nada a partir do que restara, dos escombros de mundos antes habitados aos milhões pelos seus iguais.

 

Equipou a nave com os instrumentos mais letais do seu arsenal de desinfestação planetária, determinado a perder ainda menos tempo nessa segunda deslocação ao terceiro planeta de um diminuto sistema solar, numa galáxia remota, onde reinava a monotonia das formas de vida inferiores, criaturas medonhas que se propagavam pelo planeta inteiro a um ritmo que o surpreendera na primeira deslocação, pouco tempo atrás.

Nada restara do que antes povoara o planeta quando a guerra finalmente acabou, apenas destroços pulverizados por armas de destruição em massa que ambas as partes não hesitaram em utilizar, deixando inúmeros planetas sem condições para neles se restabelecerem os grupos colonizadores de mundos como outrora.

Mundos que o lembravam agora de tempos que todos desejariam esquecer e ele encarregado da respectiva manutenção, contrariado e quase sempre desleixado ao ponto de permitir que a vida voltasse a aparecer, como uma praga, e ocupasse o espaço que lhes pertencia há muitas gerações.

 

Era longa a viagem e raramente regressava a casa a horas decentes para jantar, mas a sua espécie era reconhecida pela paciência e em nada o perturbava o caminho a percorrer mas o mesmo não podia dizer do nojo que lhe provocava a bicharada que encontrava, aqui e além, na sua zona de intervenção.

Mantinha-se entretido com a preparação do equipamento mais a batota que fazia para enganar os seus superiores, boa parte da carga despejada pelo espaço para encurtar a estadia nas lixeiras que deveria cobrir com a substância que eliminava toda a matéria orgânica, deixando as terras livres para a futura reocupação.

Claro que nunca resultava por completo a operação e isso obrigava-o a repetir em centenas de locais os mesmos procedimentos, a rotina insuportável da aniquilação de novas hordas de seres bizarros que progrediam a partir do quase nada que deixava para trás.

 

Parou a nave a uma distância prudente para evitar qualquer onda de choque ou os detritos que o trabalho pudesse provocar e ligou o monitor para acompanhar, por ordem do concelho científico, a evolução das espécies que pudessem, eventualmente, ocupar os planetas na sua ausência. Servia, segundo lhe diziam, para aperfeiçoarem ainda mais a eficácia de desinfestações posteriores.

Quase saltou na cadeira quando distinguiu uns bichos muito diferentes dos restantes no comportamento e concentrou nesses a sua atenção.

Assistiu intrigado à evolução daquelas criaturas alienígenas e acabou por se esquecer de jantar, estupefacto com aquela mutação de uma pequena parte da bicharada que conseguira proliferar após a sua primeira visita ao local.

Quando lhes percebeu a capacidade de comunicação entre si desligou os gravadores, atemorizado pelas consequências que a sua negligência assim revelada pudessem acarretar.

Deixou-se ali ficar enquanto se desenvolviam e depressa tomariam de assalto todo o planeta, exterminando aos poucos todas as espécies que os rodeavam, ameaçadoras ou não, e (isso deixou-o petrificado) espalhando igualmente a destruição entre si.

 

Foi essa semelhança de comportamentos que o estarreceu. Viu-se obrigado a tomar uma decisão e dispunha apenas de duas opções, cumprir a sua função ocultando os factos aos seus superiores para salvar o emprego ou virar as costas e fazer de conta que nada daquilo existia, regressar com os depósitos vazios sem despejar naquele planeta a condenação anteriormente mal sucedida.

Mas agora a vida era outra ali e ele revia o seu povo naquelas criaturas pequenas que para seu espanto começaram até a enviar engenhos voadores para o espaço exterior.

Foi aí que adivinhou o pior, descobrirem-no ali e estabelecerem qualquer espécie de comunicação que o pudesse de forma insidiosa cativar.

Atordoado, entendeu partir por não possuir a frieza necessária para levar a cabo a sua missão, deixando-os viver naquela esfera azul nos confins sem lhes denunciar a existência (o que obrigaria a um relatório que demoraria mais de um milhão de translações daquele planeta a terminar).

 

Acabou por despejar a carga num gigante gasoso do mesmo sistema solar e manteve-se ocupado no caminho de volta a treinar uma aparência normal quando desse o trabalho por concluído no final desse turno enquanto tentava imaginar futuros desenvolvimentos para a evolução daquela espécie perturbadora nascida dos resíduos da sua, tão diferente na aparência mas tão parecida na estupidez como ele agora se encarregara de provar ao decidir poupá-los à destruição total.

Tentou também apaziguar o desconforto que lhe provocava a noção de que não tardaria a ter que regressar ao pequeno mundo azul e enfrentar de novo o dilema de acabar ou não com a existência de mais uma fornada de indesejáveis num terreno que teriam de ocupar um dia.

Decidiu adiar-lhes o fim (já tinham existências tão efémeras, coitados...) pois sabia que não enviariam colonos enquanto ele não garantisse a habitabilidade do planeta e foi nisso que pensou enquanto ceava à luz das três luas de Mandir.

 

Ainda nem tinha acabado a refeição quando viu no comunicador a expressão enfurecida do chefe de departamento, acabada de receber a informação da proveniência de uns tais de “humanos” cujas naves se aproximavam como uma praga para fazer tombar o último bastião de resistência contra a colonização forçada, brutal, de mais um sistema solar.  

05
Out11

POR UM CANUDO

shark

Mergulhou na imagem que lhe oferecia o telescópio de um local no Universo onde podia sentir-se em paz. Deixou-se levar pelo brilho das estrelas, pelo passado da luz, até onde o espaço o envolvia num abraço imaginário e o protegia de males sem sentido algum na ordem natural daquele local que espreitava, estava lá, e o deslumbrava com danças de gases e de detritos, com a beleza de momentos de um tempo que não era o seu mas parecia.

Era isso que o atraía para aquele buraco de fechadura por onde se reservava o direito de observar os locais e os tempos que nunca poderia experimentar de outra maneira, limitado pela lentidão do progresso que lhe abria janelas para o espaço mas o fechava entre portas no chão.

Navegou por aquela pequena mas tão rica parcela do espaço tão distante que entretanto poderia já nem existir tal e qual, como um velejador solitário na imensidão relativa de um oceano qualquer, isolado das influências perniciosas do exterior.

O espaço que agora via era o espaço no qual vivia a bordo da sua insanidade permanente que os outros acreditavam intermitente porque ele entretanto aprendera a fingir, por detrás de silêncios oportunos, alguns momentos genuínos de lucidez.

Fugia para aquele observatório que lhe servia um modo de vida ilusório porque apenas lhe desviava a atenção de cada medo, de cada papão, que o atormentava na outra vida que o obrigava a caminhar pela realidade terrena, os trocos da existência pequena que o arrastava para longe do seu mundo extraterrestre de fantasia que sonhava enquanto fugia, enquanto espreitava as utopias que jamais poderia alcançar naquela evasão temporária que era afinal uma ingénua manobra de diversão.

 

Tentava fugir de uma prisão implícita na liberdade condicional que a vida lhe permitia, a viagem aos mundos que nunca descobria com o seu equipamento amador e inventava no interior da sua mente que era guiada por um enredo de ficção.

Alimentava a ilusão nos raros momentos de sossego que a vida a sério lhe permitia, enquanto voava, enquanto fingia que o mundo perfeito estava ali mesmo, quase ao alcance da sua mão estendida à do alienígena entretanto enviado para o salvar.

01
Abr11

A CRISE DO FUTURO - EPISÓDIO UM: NA PIOR ALTURA

shark

Era uma vez…

Bom não era uma vez ou o texto começa a ser disparatado logo na abertura pois a acção situa-se num futuro próximo. (Será uma vez. Não soa bem pois não?)

 

A polícia já havia recuado umas centenas de metros perante a avalanche humana da manifestação contra a crise financeira. Desesperados, milhares de cidadãos convergiam agora para o Parlamento no sentido de reclamarem contra as medidas de austeridade que acentuavam os efeitos de uma profunda recessão em que toda a Europa mergulhara.

Ardiam carros na via pública e muitas montras partidas nas lojas circundantes denunciavam a violência do protesto quando do céu chegou um engenho voador.

 

Todos pararam para assistirem à aterragem do que muitos identificaram de imediato como um OVNI e instalou-se um silêncio impensável minutos antes durante todo o tempo em que se aguardava algum tipo de movimento no aparelho.

Poucos minutos depois, uma porta começou a abrir e para espanto geral uma criatura alienígena completamente diferente das que as pessoas conheciam dos filmes de Ficção Científica saiu da sua nave espacial e pisou a calçada.

Atónitos, manifestantes e forças da autoridade concentraram a sua atenção no estranho tripulante da não menos estranha máquina voadora.

 

De repente ouviu-se um som estridente que muita gente julgou tratar-se de algum dos megafones da manifestação maioritariamente composta por desempregados e pessoas a quem a crise acarretara a perda dos seus bens.

Foi então que o extraterrestre agarrou com uma das suas várias pinças extensíveis algo de parecido com um microfone e aproximou-o mais ou menos da zona do que correspondia ao baixo ventre e abriu-se um pequeno orifício de onde parecia falar.

 

As primeiras palavras foram perceptíveis apenas aos poucos que dominavam o russo e que, entusiasmados, começaram a cantar épicos de esquerda, muita gente convencida de que os seres de outro planeta traziam a salvação.

Mas depressa os técnicos de som ou algo parecido ajustaram o tradutor universal e os milhares de pessoas que aguardavam o inevitável “vimos em paz” começaram a perceber tudo o que o ser disforme dizia:

 

- …e enquanto meros arrendatários deste planeta pertencente à Confederação Galáctica de Proprietários deverão liquidar sem demora as facturas vincendas desde o correspondente a 65 milhões de anos terrestres atrás, aquando da tentativa de cobrança coerciva e consequente acção de despejo do terreno em causa, sob pena de uma nova intervenção nos moldes previstos na Sétima Lei da Apropriação de Sistemas Solares.”

 

O ET fechou o orifício que seria a sua boca e ficou a aguardar uma reacção por parte dos terráqueos diante si e cuja expressão alterada não soube interpretar.

A polícia e o exército, um numeroso contigente entretanto despachado para o local, revelaram-se impotentes para evitarem o linchamento popular.

03
Mar11

UM MAU NEGÓCIO

shark

O Casimiro, homem pacato de origem humilde e tido por pessoa de bem na sua aldeia saloia do final do Séc. XIX, era casado com uma das mais belas mulheres da região.

Um dia, um forasteiro abastado oriundo de Espanha e proprietário de terras e de casas na zona, cruzou-se com o casal no adro da igreja e não lhe passou despercebido o encanto de Genoveva.

Ciente do seu poder sobre a população local e conhecedor da condição financeira do casal não hesitou em dirigir-se a Casimiro para lhe propor, com arrogância, a quantia de 20 reis em troca de uma noite com Genoveva.

Casimiro, lançou-se de imediato ao fulano e desancou-o sem piedade até o deixar prostrado no chão. Depois terá deitado a mão ao ancinho de Gusmão, um seu vizinho e amigo, encostando-o à garganta do mariola a quem exigiu que se retratasse sem demora.

O outro de imediato gritou o arrependimento e retirou a oferta, julgando assim obter o perdão.

Casimiro deixou tombar todo o peso do corpo sobre o ancinho e matou-o ali mesmo.

 

Quando o agarraram e o confrontaram com o facto de ter matado o ricalhaço apesar de este ter pedido desculpas em público pelo seu acto indigno, Casimiro esclareceu que a sua ira fora provocada não pela proposta em si, que entendia a cobiça de qualquer homem perante o encanto da sua mulher, mas pelo insultuoso valor da parca quantia oferecida...

24
Jan11

O PORTUGAL DOS PEQUENINOS

shark

Era uma vez um edifício chamado Portugal, ocupado na esmagadora maioria por herdeiros dos seus primeiros ocupantes.

Um dia, quem mais ordenava no Portugal decidiu abraçar a propriedade horizontal e foi uma festa no edifício. Unidos venceriam todos os problemas e em plena euforia pelo privilégio que isso representava decidiram promover a primeira assembleia de condóminos na qual, e apesar de as opiniões divergentes darem origem ao nascimento de sub-grupos entre os vizinhos, elegeram a primeira administração do condomínio.

 

Tudo parecia correr bem, embora fosse indisfarçável o mal estar provocado pelas divisões internas, nomeadamente por causa da tendência dos grupos minoritários e menos próximos dos elementos da administração estarem sempre do contra e com palpites acerca da melhor forma de fazer as coisas perante uma maioria de vizinhos descrentes.

Porém, as coisas complicaram-se quando, passados uns anos sem que alguém se ralasse com os sinais preocupantes nos sucessivos relatórios de contas ou com os indicadores visíveis de má conservação nos interiores, as reuniões cada vez mais vazias e mesmo no limite para garantir um quórum digno desse nome, começaram a surgir fissuras na fachada e os moradores dos prédios contíguos ficaram a conhecer a balda que por ali reinava.

 

Mas não ficariam por aí as broncas que ainda mais acentuaram as divergências. Com as reuniões cada vez menos concorridas e os voluntários para a administração, sempre os mesmos, a alternarem a tarefa que diziam ingrata mas assumiam com enorme sacrifício pessoal e porque mais ninguém se oferecia, os vizinhos preferiam discutir os problemas e palpitar soluções nos patamares dos seus pisos, acrescentando ao mau ambiente do edifício as suas críticas incessantes e inócuas a cada administração em funções mas sem darem o corpo ao manifesto para fazerem melhor, o Portugal foi-se deteriorando aos poucos e depressa atingiu o limiar da habitabilidade.

 

Metia dó, aquele outrora orgulhoso edifício.

Contudo, os vizinhos que se abstinham de participar no que apelidavam de arranjinho entre as partes insistiam em arrastar cada vez mais moradores para o que já defendiam como arma de luta, a ausência sistemática do único momento onde podiam tomar decisões e tratar de as levar à prática, deixando a administração entregue aos vizinhos que tanto criticavam por fazerem mal o que eles recusavam tentar fazer melhor.

Os anos foram passando assim, com as contas cada vez mais no vermelho e o edifício chamado Portugal de tal forma abandalhado que um dia apareceu um inspector que tomou o controlo das contas da administração e assim passou um atestado de incompetência a todos os moradores.

 

E passado algum tempo o edifício Portugal desabou e todos os agora sem abrigo choraram e é uma pena mas nesta história não havia mesmo maneira de encaixar um final feliz.

01
Jan11

NUM ÚLTIMO INSTANTE

shark

Tentou cobrir-se com os escudos, o seu e o do companheiro morto ao seu lado, quando mais uma nuvem de setas começou a rasgar o céu com o seu zunido habitual. Não tardou a ouvir a pancada seca do metal por toda a parte, nos escudos, nos elmos, nos corpos, no chão. Ouviu os gritos também, dos mais azarados, dos que se viam trespassados pelo arsenal defensivo daqueles que no interior do castelo tentavam impedir a invasão.

 

Ajoelhado no chão, ele percebeu que se aproximava a hora do assalto final quando vinte homens se dividiram em duas filas e levantaram o enorme aríete apontado ao portão principal. Ouviu as ordens para desembainhar espadas, válida para todos quantos ainda combatiam, todos quantos ainda podiam avançar para o passo seguinte daquela batalha sem tréguas que há dias mantinha o seu exército acampado num cerco montado para fragilizar os defensores, a quem os mantimentos há muito já deveriam escassear.

Estariam certamente enfraquecidos, apesar da resistência que ofereciam, a luta que persistiam em manter acesa porque teriam tudo a perder uma vez concretizada a ocupação por parte daqueles a quem chamavam inimigos mortais.

 

A primeira fileira, lanças levantadas, já estava ordenada por detrás dos calmeirões designados para embaterem com o pesado aríete na última barreira entre o lado de fora, gente determinada em acabar com o último bastião defensivo daquela nação orgulhosa, e o lado de dentro, feito de pessoas de pedra como pareciam aos que viam outros soldados verterem o seu sangue naquele solo estrangeiro e raramente conseguiam assistir à morte de um combatente anfitrião.

O estrondo das pancadas no portão sobressaltou-o, como aos restantes, e certamente atemorizaria ainda mais aqueles que se apressavam a concentrar esforços naquele acesso prestes a colapsar à força de braços, homens enormes que urravam como animais e coordenavam dessa forma a conjugação de movimentos que os tornava impossíveis de deter naquela altura.

A madeira cedia, aos poucos partia e saltavam pedaços a cada nova investida enquanto das ameias já começava a jorrar o azeite a ferver que queimava os mais próximos da muralha como bafo de dragão.

 

Sentiu acelerar o coração quando a primeira brecha abriu e um pedaço de luz se viu do interior, a iminente entrada do invasor no perímetro defendido com bravura por homens de armas como ele, guerreiros recrutados pelos senhores endinheirados a quem prestavam vassalagem em troco de esmolas que para a maioria pareciam fortunas pois bastavam para matar a fome aos seus.

Era essa a única motivação que os levava a partir para batalhas que nunca percebiam na sua verdadeira dimensão, diziam-lhes apenas que só a vitória interessava ou seriam eles a ocupar o mesmo lugar dos seus inimigos mas nas ameias dos castelos no Reino que os enviara para ali.

O portão cedeu por fim e os lanceiros avançaram como uma horda de bárbaros enlouquecidos pelo sangue e pela dor que os rodeava, pela sobrevivência que os obrigava a escolher entre matar ou morrer e era fácil a decisão.

 

Entrou na segunda vaga de assalto, entalado entre parceiros que se apertavam na passagem, atrasados no avanço pelos cadáveres dos que tombavam a cada metro conquistado, o inimigo todo concentrado no combate corpo a corpo sem margem de manobra para distracções ou pequenas indecisões que resultavam quase sempre no som horripilante da carne rasgada pelos instrumentos afiados de metal.

O inimigo era mesmo mortal, como descobriria na primeira estocada que daria em cheio no pescoço desguarnecido de um soldado da guarnição. Outros dois lhe seguiriam o destino, abatidos por golpes certeiros dos mais hábeis guerreiros que agora tomavam posições no espaço que reclamavam agora para si.

 

E foi então que o seu olhar se fixou no rosto de um oponente que pelo menos aparentemente parecia em dificuldade para manobrar a espada tão pesada que lhes competia utilizar. Perdeu-se naquele olhar quando a percebeu surpreendente, uma mulher demasiado valente que lutava entre homens com a fúria estampada na expressão e ele colado ao chão, demasiado perto para evitar o golpe que haveria de o matar.

 

Estendido no chão a sangrar, assistiria entretanto ao preciso momento em que a jovem guerreira ajoelhou finalmente, tombando mesmo à sua frente com uma seta cravada nas costas que a sentenciara com pena capital.

De olhos abertos, consciente, ela deixou-se ficar, resistente, à espera da morte que a levaria também para o céu que lhes prometiam quando as armas benziam antes de a batalha começar.

 

Morreram assim a olhar um para o outro, como que hipnotizados, com os dedos tingidos de vermelho entrelaçados num gesto derradeiro de compaixão.

20
Jan10

FRUTO PROIBIDO

shark

Como um gaiato obeso, guloso, diante da montra de uma pastelaria, ele olhava mas tudo fazia para reprimir qualquer manifestação do desassossego que lhe provocava a mulher mais bonita que algum dia conhecera.

 

Sorvia cada minuto em que podia privar por algum pretexto com aquela criatura perfeita que o perturbava ao ponto de lhe alterar a pulsação, de descompassar o coração com o impacto do seu encanto de menina num corpo de mulher.
No entanto, sabia ser proibido qualquer sinal ou insinuação. Reduzia à contemplação a sua iniciativa, ainda assim num esforço tremendo para esconder no olhar tudo aquilo que ela fazia disparar nos bastidores do seu emocionário.

 

Pensava-a em muitos momentos, os mesmos em que se aplicava nos esquecimentos de que necessitava para controlar o efeito daquela imagem no seu peito acelerado e no cérebro agitado que cogitava por instinto as abordagens possíveis para tentar algo mais. Coisa pouca, talvez um pouco de tempo para com ela partilhar um momento longe dos papéis que lhes competiam, das peles que vestiam no contacto institucional...

Depois a vida continuava e ele sentia sempre que tardava a seguinte ocasião em que não permitia que se fizesse ladrão por temer as consequências de um desaire quase certo, sempre que estava tão perto daquela diva ao ponto de quase lhe sentir da pele o mesmo calor que os olhos dela irradiavam sob a forma de luz.


Temia-se absurdo por se atrever capaz de ignorar tudo aquilo que traz de inconveniente a uma pessoa um avanço despropositado, de arriscar um resultado mais desastroso ainda do que o embaraço de uma recusa liminar de qualquer passo que pudesse dar noutro sentido que não o admissível naquelas circunstâncias.

Mas adivinhava as consequências da sua decisão, daquele esforço de contenção de um impulso irreprimível de forçar um milagre possível, um desfecho positivo em potência.
Aquela mulher, por coincidência, era um anjo em versão humana e quase o fazia acreditar que talvez devesse avançar um pouco mais para não se concretizar depois o pesadelo que antevia de cada vez que percebia que o tempo que os aproximava não seria duradouro, iria acabar.

 

E ele, tão perto do tesouro, já sabia que estava marcado o dia em que se esgotariam as hipóteses de o tocar.

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