Há factos que, por muito que uma pessoa tente evitar, acabam por forçar a pele de dinossauro por baixo da jovialidade que tentemos transmitir e até sintamos na maioria do tempo.
Contudo, quando a mudança de década implica meio século de existência e um gajo está mesmo prestes a dobrar esse marco de transição acabamos por ceder à pressão dos acontecimentos, reagindo em função de emoções antigas e de recordações deslocadas do contexto pela passagem de tempo que parece sempre tempo demais quando o avaliamos assim.
Eu fui um iscspiano. Ou seja, frequentei a mesma casa do puto a quem o actual presidente do ISCSP quer fazer a folha por lhe ter hostilizado o chefe em dia de festa. A casa era outra, um palácio belíssimo da rua da Junqueira, e o espírito da coisa pelos vistos também. O ISCSP era a casa de Adriano Moreira, Narana Coissoró, Basílio Horta, Reboredo Seara e muitos outros desse calibre, fervilhava de debate político, ideológico, e o espaço, pela dinâmica da intensa intervenção estudantil, acabava por ser um viveiro de eventos e ponto de passagem para algumas figuras ilustres da política que nessa altura se fazia.
Mas uma casa daquelas não é feita pelas paredes e sim pelas pessoas que lhe dão vida, pelo que ser iscspiano deverá representar nesta altura o mesmo que representou para mim.
Esse orgulho pela escola (que nunca viveu da popularidade da sigla que a identifica de entre as várias faculdades da Universidade Técnica de Lisboa) é feito da consciência que tomamos da responsabilidade de pertencer a uma instituição com pergaminhos. Os do ISCSP são escritos pela mão de pessoas reconhecidamente inteligentes, as mais ilustres que por lá passaram, e pelas de quem, como eu, deve assumir a obrigação moral de respeitar os valores mais importantes dos que lá se ensinam e se fazem (ou pelo menos no meu tempo se faziam) acontecer.
No ISCSP existiu sempre um espaço para a irreverência e foi nesse mesmo que encaixei, obrigado por isso a conquistar o respeito dos meus pares que não o ofereciam de mão beijada a qualquer mariola, tal como acontecia com o corpo docente liderado por um conservador alegadamente inflexível e assumidamente de direita, Óscar Soares Barata, que depressa se revelou aos meus olhos boémios mas atentos como um homem tão inteligente no ensino quanto hábil na liderança.
Ele era The Man, apesar do seu perfil menos mediático, e constituía o papão de serviço para a caloirada mais facilmente impressionável ou para os idiotas que sempre arranjam maneira de se infiltrarem nestes sítios.
Porém, mesmo quando começaram a ruir algumas tradições e a surgir focos de contestação e de rebeldia (a guerra contra as propinas foi vivida nessa altura e acelerou os corações e as cabeças residentes), o então líder absoluto do ISCSP sempre encontrou uma forma de compatibilizar a sua postura austera com o espalhafato típico de uma massa estudantil informada e empenhada em melhorar as condições do ensino e mesmo a da gestão do espaço em função dos interesses legítimos dos estudantes da altura, nomeadamente o contingente africano para o qual toda a ajuda era pouca.
O então Presidente do ISCSP era, de facto, um homem cujo olhar desarmava muitos atrevidos da treta e cuja argumentação confirmava a sua impaciência para com os excessos e as iniciativas ou discursos desprovidas de substância, qualquer que fosse a inclinação político-partidária dos seus interlocutores. Sabia distinguir as suas convicções das exigências da função que lhe competia desempenhar e pensava antes de tomar cada decisão, sendo poucas as que lhe conheci que o pudessem favorecer de forma directa, mas bastantes as que resultaram em benefício de quem vivia no ISCSP muito mais do que na própria casa.
Nesse ISCSP estudava gente de todo o lado e de todo o tipo, havia os que passavam discretos pelas aulas e completavam uma licenciatura sem nunca intervirem de alguma forma no resto do que à sua volta acontecia. Mas também havia o seu oposto e quando se justificava toda a gente se mobilizava em torno das causas por abraçar e uma delas era a solidariedade para com os colegas, os iscspianos a quem algo de menos bom pudesse acontecer.
Nesse ISCSP o Presidente jamais tentaria entalar um aluno por revelar coragem ou desespero, mesmo que isso pudesse embaraçar algum tipo de protocolo. E jamais os alunos daquela casa permitiriam que isso pudesse acontecer a um dos seus, sobretudo com os contornos estupidamente claros da ligação entre Manuel Meirinho (candidato pelo PSD na Guarda nas últimas Autárquicas e actual Presidente do ISCSP) e a decisão do próprio de abrir um inquérito disciplinar por simples vingança. Por abuso de poder.
E perante este episódio só uma reacção colectiva firme e determinada, um movimento estudantil digno desse nome, pode fazer a diferença.
Essa, em qualquer espaço físico, é a alma do ISCSP que espero agora reconhecer.