Ganha balanço para o salto que precisas dar, abraça a atracção pelo abismo onde se afunda o teu olhar. Memórias (doidas) varridas de emoções que encontraste despidas no instante em que te propuseste pôr tudo a nu, o centro do mundo és tu enquanto te concentras para a descolagem, enquanto te libertas da bagagem dispensável, de tudo aquilo que é passado a ferros no presente que te esmaga com a ansiedade de não saberes o que o futuro te reservará.
Perde de vez o medo da exposição de qualquer segredo perdido no tempo em que escondias as fraquezas, assume a expressão das tuas certezas e intimida dessa forma qualquer agressor. Grita se necessário, enfrenta o mais perigoso adversário, dentro de ti, um lastro de outros que carregas como um Sísifo imbecil e te atrasa, perdido por um, perdido por mil, para o compromisso inadiável com o destino que o acaso te ofereceu e que, para esse efeito, é mesmo só teu.
Pelo espelho retrovisor da memória conseguia distinguir ao longe a coluna de fumo que o tempo, com a ajuda de um vento imaginário, não tardaria a dissipar.
Continuava a avançar e só olhava para trás de relance, a imagem derradeira de uma aventura tão passageira como o fogo que apenas ardia enquanto encontrasse no caminho algo de vagamente combustível para alimentar a sua energia espalhafatosa mas comprovadamente fugaz.
Já pouco olhava para trás, as cinzas apagadas, as labaredas extinguidas no passado que faz das coisas que pareciam as coisas como elas são, a clareza da visão aguçada pela pedra de amolar que a vida cuida de instalar no sítio onde as lembranças se atafulham à mercê da humidade e do pó e mirram até à sua dimensão realista, depois de uma breve troca de pontos de vista entre a emoção adolescente e a sabedoria anciã.
O sol a romper na manhã presente a escuridão de cada noite agora dada como perdida, a lógica temporária dos factos desnuda aos olhos de uma adversária com visão de raios xis, a chata da lucidez que andava desaparecida mas o tempo recuperou.
Já mal recordava o fogo que se apagou, aquela imagem derradeira no espelho retrovisor da memória para o qual já pouco olhava, sinais de fumo ilegíveis em danças da chuva sopradas, mensagens esborratadas pelo vento no céu de cor alaranjada pela agonia final da madrugada e ele sabia de antemão, gritava-lhe o instinto que ecoava o coração, que outros dias iriam nascer, a vida teimosa a prosseguir sem qualquer consideração para com todas as coisas deixadas para trás.
E ele agora já só olhava para a frente, iluminado pelo sol nascente de um rio feito de luz.
Em Moscavide não pára de chover há horas mas o abastecimento de água estará suspenso entre as oito e as dezoito.
A vida tem destas bizarrias...
O posicionamento de um agnóstico em matéria religiosa é do mais confortável que existe quando está em causa uma fé. É quase the best of both worlds, podendo resvalar de vez em quando para o herético para logo depois inclinar a perspectiva para o lado mais espiritual das respostas que tanta gente tenta obter ou tem por garantidas sem provas factuais capazes de impressionarem um indeciso como eu.
Ou seja, o meu género de agnóstico jamais poderia afirmar um deus, qualquer deus, da mesma forma que não pode renegar, de todo, o pressuposto de uma hipotética existência divina.
Eu sou um agnóstico que chama energia à alma e chama a deus amor. Não vou alongar-me neste tema fascinante porque não o pensei o bastante e porque não me julgo com arcaboiço para tal mergulho.
Ainda assim, posso afirmar que sou um agnóstico mais difícil de converter à causa ateísta do que à crença de que existe algo que nos transcende e que se movimenta numa outra dimensão. Ou melhor, embora não compre as versões correntes, institucionais, de deus como milhões o acreditam sou muito céptico quanto à inexistência de vida para lá da morte.
Tenho uma porta aberta na minha fé para a existência de uma forma de energia em que nos transformamos e que conserva as nossas memórias e a nossa essência, espíritos – podemos chamar-lhes assim, sendo que alguns de nós se elevam a um patamar superior (como acontece por cá, aliás).
Eu gosto de acreditar em anjos, sobretudo os da guarda, as melhores pessoas que nos amaram aqui e conseguem perpetuar esse amor e convertê-lo na força com que nos amparam enquanto cá andamos.
Essa imagem bonita, luminosa e alada serve-me tão bem como qualquer outra e bate aos pontos uma alma enfiada num lençol com uns absurdos buraquinhos na zona dos olhos, sempre que tento imaginar os anjos da guarda em que gosto de acreditar (mesmo não os subordinando a outro deus que não uma energia imensa e intensa a que chamamos Amor).
É que hoje faz anos que nasceu um desses anjos a que me refiro e o seu legado terreno constitui para mim um forte motivo para querer expressar-lhe a minha gratidão sob esta forma.
O sol a apresentar cumprimentos de despedida e a noite a tomar aos poucos o seu lugar no céu.
A vida a namorar as silhuetas dos amantes abraçados que se despedem da noite com um sorriso nos lábios e uma vontade imensa, livre de interrogações castrantes e vãs, de acolher no peito o calor da alvorada de mais um milhão de amanhãs.