Anormalidade Possível
Gente com máscara, gente sem ela. Alguns abraços, dois beijinhos até. Aqui e além, como dantes se fazia. O vento a apagar a pandemia como um nome escrito na areia, mesmo à mão da ligeira rebentação das vagas ideias desconfortáveis.
Já passou. Cada vez mais gente acredita, cada vez menos gente ainda hesita em ceder à tentação da esperança ou apenas à saturação das novas regras que um novo medo implicou. Já lá vai, o pensamento optimista ou a presunção negacionista assim o reclamam. Ou apenas por muita gente estar farta, cansada de enfrentar a ameaça invisível que tanto nos afastou.
Mas isso era dantes, há ano e meio ou por volta do Natal. Agora acabou, com quase toda a gente vacinada no lado do mundo onde a realidade acontece assim, como que por magia. Não é, de todo, uma fantasia acreditar que o bicho irá migrar para onde não têm hipóteses de açambarcarem a sobrevivência. E depois fica lá, quietinho, do lado de fora de um muro imaginário que nos separa daquelas e daqueles que a reacção mundial à pandemia desnudou na condição de menos importantes, de dispensáveis. Como os que morreram do lado de dentro e tanta gente minimizou enquanto preocupação. Por serem velhos, por serem doentes e, agora que acabou (como parece), mas ainda mata, por serem tão poucas e tão poucos por comparação com quem sobrevive e ainda pode arriscar o contágio porque se acredita imune, quiçá imortal.
Abraça-se o novo normal, cada vez mais parecido com o anterior. Sem medos, com determinação. Uma nova forma de loucura estampada no olhar, menos evidente pela máscara que caiu e deixou o sorriso em liberdade para contracenar com o dito olhar protagonista, espelho de cada alma perturbada pelo cagaço que a Humanidade de cima apanhou e a de baixo aguarda impotente. O resto segue adiante, cheio de confiança que o poder político preferiu alimentar desde que pessoas a morrer só é grave quando fazem notícia. Para poder virar a cara a hipotéticas consequências, pois o povo é quem mais ordena e o povo mais ruidoso é aquele que ordena mais.
Munidos de megafones, vamos exigir todas as liberdades possíveis, mesmo as que nos possam condenar. Vamos para a rua gritar a nossa fúria contra o Estado repressor e autoritário, antes que as coisas se descomponham e regressemos às janelas para aplaudir quem cuida de entubar pessoas mais azaradas, ou simplesmente mais assanhadas na luta pelo direito à insanidade quando a dura realidade é demasiado agreste para tolerar.