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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

07
Abr05

RESERVA MORAL

shark
velocidadecontrol.jpg

Era bonita, inteligente e sensual. Uma combinação irresistível. Apaixonei-me e consegui conquistá-la. Foi uma surpresa para todos quantos nos conheciam.
Eu, estarola, andava numa fase destravada e a sorte sorria-me nos assuntos do amor, ninguém me agarrava. Ela, católica devota e virgem até às orelhas, reprimia as tentações da carne com uma tenacidade ímpar. Uma combinação impossível. Mas aconteceu, num serão em que lhe pedi licença para a beijar nos lábios e ela deixou. Depois de tal intimidade, nem se punha a hipótese de não lhe propor namoro. E eu, claro, propus.

Alguns meses mais tarde, era notório o desgaste da nossa relação amorosa. Ela sonhava-se virgem até ao casamento e eu não fazia tenção de casar nas décadas mais próximas. O conflito de interesses nessa matéria começou a gerar algum desconforto e eu gostava demasiado dela para a encurralar. Ou a seduzia o bastante para a fazer abdicar dos princípios que defendia, mandando às urtigas o voto de castidade, ou tinha que acabar com a relação antes que se tornasse inevitável ir em busca de alternativas pela surra. Mas era de uma amiga que se tratava, a primeira hipótese não se colocava.

Foi um momento complicado para ambos, como sempre acontece na sequência do final prematuro de qualquer história de amor.
Eu sentia-me desiludido e frustrado. Dois meses depois ainda não conseguira ultrapassar a situação e permanecia-lhe "fiel", apesar de livre como um passarinho. Acabei por voltar à carga, embrulhámo-nos durante umas horas e quando já a tinha seminua sobre uma cama a consciência traiu-me. Perguntei-lhe olhos nos olhos se tinha noção do que estava prestes a fazer e se avaliara bem as respectivas consequências, considerando que a minha paixão por ela não bastava para desistir dos meus ideais (tal como não queria destruir os dela). Disse-me que não. E eu abracei-a, acariciei-lhe o cabelo durante um bom bocado, conversámos um pouco e depois saí.

Quinze dias depois, nem mais um, encontrei a irmã dela. Perguntei-lhe como estava a mana e ela esclareceu-me, indignada.
Andava metida com um crápula, um gajo sem eira nem beira que, entre outras reviravoltas no destino, a possuiu.
Aquilo que negara meses a fio a um homem que a mimava entregaria de bandeja, em duas semanas, a um sabujo mau como as cobras...
Duraria mais um mês, essa relação com contornos bastante desagradáveis que envolveram a família da moça e lhe arruinaram a reputação ao ponto de ela ir viver para outra cidade, incapaz de lidar com a pressão.
Ainda hoje não sei o que me doeu mais em toda esta cena. Gosto de acreditar, em nome do romance, que doeu mais o dano irreversível que o nosso futuro a dois sofreu. Contudo, e vendo as coisas a frio, soa-me legítimo assumir que também fiquei com uma grande tola e ferido no meu orgulho machão.

Desde esse episódio ganhei a certeza de que nunca entenderei o complicado processo de raciocínio das mulheres. Mas apesar de escaldado neste exemplo concreto que convosco partilho, sei que se a vida me confrontar com um dilema idêntico reagirei da mesmíssima maneira. E isso não faz sentido algum, pelo que também me vejo forçado a reconhecer que posso ser um tipo porreiro mas parte dessa boa onda pode residir no facto de eu ser afinal um ganda otário, considerando o desfecho desta situação. Tranquilo na consciência, mas sem explicação plausível para esta estranha tendência para o papel mais absurdo que um homem pode vestir na qualidade de amante potencial.
Lembram-se da figura do batedor? Aqueles índios renegados que se alistavam no exército americano, farejavam as pistas, descobriam o melhor caminho, garantiam a segurança dos brancos e depois afastavam-se para um canto e ficavam a assistir às gloriosas conquistas e vitórias dos canalhas mais espertos e menos escrupulosos que acabavam por os lixar no fim?
Eu explico-vos daqui a um bocado, assim que a fogueira estiver no ponto para vos enviar os sinais de fumo...

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