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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

30
Set21

A Posta que mais vale tê-lo do que valê-lo

shark

As recentes incursões pelas viagens espaciais, chamemos-lhes assim, por parte de milionários pode ser vista sob muitos prismas. Uns dirão que é coisa boa para a Ciência, para o progresso tecnológico e assim. Outros vislumbram a natureza clara do que é apenas mais um negócio chorudo, promovido de borla à boleia do estatuto social de quem o financia e dele lucrará.

Mas ainda há os que renegam a façanha, sentindo-a como um insulto à pobreza, pelo desvio de verbas e de recursos para projectos megalómanos que poderiam ser investidos no combate aos muitos problemas que este mundo enfrenta, antes de ir em busca de outros planetas para colonizar.

Mas a maioria opta por ignorar e optar pelo cada um sabe de si, o dinheiro é deles e que o gastem como melhor lhes aprouver. Tendo a subscrever esta posição, tanto porque acho que o pressuposto é universal como pelo facto de há muito ter perdido a esperança no apelo filantrópico da esmagadora maioria dos privilegiados pela fama, pela fortuna ou pelo poder. Ou pela combinação de todos estes requisitos, cuja atracção parece ser recíproca.

Contudo, há outros ângulos pelos quais podemos olhar os foguetões privados dos vaidosões abastados. Por exemplo, o do que isso implica enquanto reflexo do tipo de sociedade que temos vindo a construir, assente na admiração de quem tem e não de quem vale. O que alguém vale mede-se pelo que tem e se não tem é porque não possui valor para o lograr. É uma lógica simplista, intuitiva, mas pauta este mundo novo no qual um milionário é figura de destaque apenas por essa qualidade: a de ser rico e, por inerência, famoso. Não interessa se não passa de um palerma boçal, se é rico tem de ser idolatrado e se é famoso tem de chegar a rico para a idolatria ter maior substância.

Toda a vida foi assim, dirão. E toda a vida assim será, alguém cuidará de acrescentar. E é verdade, pelos vistos, pois também no passado o pecúlio acumulado conferia prestígio ao mais labrego dos cidadãos. Houve alturas em que o funil era mais estreito no bocal, pela necessidade de controlo efectivo da distribuição da riqueza por parte de quem mandava na cena. O clube privado tinha reserva de admissão, pelintra não entra, e os milagres do enriquecimento só podiam estar acessíveis aos devidamente qualificados para a função de ser rico sem perder o norte à relação com o poder efectivo, de mútua interdependência. Ser nobre ou ser bispo ajudava imenso nesta questão.

Entretanto, o enriquecimento democratizou-se e a burguesia entrou em cena. O bocal do funil alargou e mais pessoas puderam bater-se pelo seu quinhão, até ao ponto em que passou a ser legítimo a qualquer indivíduo nascido na miséria ambicionar subir a pulso até uma fortuna colossal. Uma coisa linda, em teoria. Tanto quanto a da partilha equitativa de bens entre a malta, sem nenhum membro do colectivo encontrar forma de aumentar a sua quota pessoal relativamente à dos restantes. A realidade é demolidora para as aspirações mais ingénuas, as pessoas são o que são, e chegados a este ponto já percebemos que trabalhar o dobro para patrões não equivale a receber o dobro do salário. E chegar a rico só a trabalhar de forma honesta e sem jamais vender a alma ao lucro também não está ao alcance da esmagadora maioria.

É talvez esta conclusão, a da extrema dificuldade de chegar a rico nascendo pobre, que leva os pelintras mais ambiciosos a olharem os milionários como semi deuses, como alguém merecedor de reconhecimento sem olhar aos fundamentos do mesmo. Só por serem abastados, uma garantia de qualidade para o cidadão moderno que tem a bitola afinada pelo cifrão. Nem interessa como lá chegaram, às tantas até herdaram e o mérito é o mesmo que conduz de forma directa príncipes imbecis ao estatuto de rei. Ou milionários falidos, e igualmente imbecis, ao de presidente, como os EUA provaram ser possível.

E tudo somado, nesta modernidade espertalhona que valoriza mais um fabricante de violinos medíocre, mas milionário, do que o violinista primoroso que acabou na escadaria do metropolitano a tocar por moedas no chapéu, o um por cento da Humanidade tem a vida facilitada porque viu assim trocada a inveja potencialmente revolucionária pela admiração simplesmente absurda. 

 

24
Set21

Anormalidade Possível

shark

Gente com máscara, gente sem ela. Alguns abraços, dois beijinhos até. Aqui e além, como dantes se fazia. O vento a apagar a pandemia como um nome escrito na areia, mesmo à mão da ligeira rebentação das vagas ideias desconfortáveis.

Já passou. Cada vez mais gente acredita, cada vez menos gente ainda hesita em ceder à tentação da esperança ou apenas à saturação das novas regras que um novo medo implicou. Já lá vai, o pensamento optimista ou a presunção negacionista assim o reclamam. Ou apenas por muita gente estar farta, cansada de enfrentar a ameaça invisível que tanto nos afastou.

Mas isso era dantes, há ano e meio ou por volta do Natal. Agora acabou, com quase toda a gente vacinada no lado do mundo onde a realidade acontece assim, como que por magia. Não é, de todo, uma fantasia acreditar que o bicho irá migrar para onde não têm hipóteses de açambarcarem a sobrevivência. E depois fica lá, quietinho, do lado de fora de um muro imaginário que nos separa daquelas e daqueles que a reacção mundial à pandemia desnudou na condição de menos importantes, de dispensáveis. Como os que morreram do lado de dentro e tanta gente minimizou enquanto preocupação. Por serem velhos, por serem doentes e, agora que acabou (como parece), mas ainda mata, por serem tão poucas e tão poucos por comparação com quem sobrevive e ainda pode arriscar o contágio porque se acredita imune, quiçá imortal.

Abraça-se o novo normal, cada vez mais parecido com o anterior. Sem medos, com determinação. Uma nova forma de loucura estampada no olhar, menos evidente pela máscara que caiu e deixou o sorriso em liberdade para contracenar com o dito olhar protagonista, espelho de cada alma perturbada pelo cagaço que a Humanidade de cima apanhou e a de baixo aguarda impotente. O resto segue adiante, cheio de confiança que o poder político preferiu alimentar desde que pessoas a morrer só é grave quando fazem notícia. Para poder virar a cara a hipotéticas consequências, pois o povo é quem mais ordena e o povo mais ruidoso é aquele que ordena mais.

Munidos de megafones, vamos exigir todas as liberdades possíveis, mesmo as que nos possam condenar. Vamos para a rua gritar a nossa fúria contra o Estado repressor e autoritário, antes que as coisas se descomponham e regressemos às janelas para aplaudir quem cuida de entubar pessoas mais azaradas, ou simplesmente mais assanhadas na luta pelo direito à insanidade quando a dura realidade é demasiado agreste para tolerar. 

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