A posta na pandemonia.
Era fácil de perceber, ainda antes da pandemia. Dizia-se que "está tudo doido". Multiplicavam-se os episódios mais ou menos graves, mais ou menos bizarros, que denunciavam isso mesmo: uma parte significativa da população parecia já estar "do outro lado".
A pandemia, com todas as pressões associadas, não só parece ter agravado o problema pré-existente como ter também feito engrossar as fileiras dos que parecem viver numa realidade paralela. E não me refiro apenas às tontinhas e aos tontinhos que defendem coisas mirabolantes como a Terra plana, mas a cidadãos comuns, com uma vida aparentemente normal, com uma postura sem alarido, subitamente a revelarem-se sem respeito por convenções, por valores, por regras elementares de uma coexistência pacífica.
E depois ainda há os suficientemente desequilibrados para defenderem arrufos fascizóides e a alinharem com o discurso autoritário de palermas sem norte que, hoje como no passado, apenas vêem na lei dos mais forte a sua única possibilidade de experimentarem alguma forma de poder, tão básicos se revelam. Tudo chanfrado, como se existisse uma avaria colectiva e contagiosa nos cérebros de cada vez mais pessoas.
A lógica é a primeira a sucumbir, afogada em falsos pretextos, falsas notícias, desinformação destinada a abrir os portões do caos às mentes mais fragilizadas, incapazes de discernirem o deserto terrível para lá da miragem policial, dominadora, segregadora de grupos sociais e agitadora da respectiva revolta que alimenta os medos fantasiados, num ciclo perfeito de alucinação daquelas que destroem aos poucos o tecido social de qualquer democracia à mercê.
Depois começam a morrer os princípios universais, substituídos pela loucura dos valores prepotentes que anestesiam a consciência de quem ainda a possua. Sempre assim foi, sempre assim será. Não é coisa de que o tempo nos salve, de que o progresso nos possa proteger.
Vemos a loucura a crescer a cada dia que passa, disfarçada de rebeldia contra um imaginário opressor que nos quer impor confinamentos, vacinas, condicionalismos à liberdade como a interpretam os malucos, os irresponsáveis e os que precisam do pandemónio como do pão para a boca para sustentarem ideias mal pensadas, acusações mal fundamentadas e assim poderem surgir no meio do caos como salvadores da Pátria que trataram de destruir, explorando-lhe as fraquezas que andaram a semear.
Vejo apenas mais uma forma de loucura, mais esperta, mais sabida, mais experimentada na arte da mobilização de tiranetes e aspirantes a ditadores, a comandantes dos modos de vida alheios. Com terreno fértil na ressaca de um problema que a todos afecta e a todos surpreendeu.
Com o manicómio de portas abertas, pela dificuldade em distinguir quem joga com a equipa toda e quem, sem dar por isso, anda a perder parafusos a cada passo sem tino numa sociedade que, como outras, acabará por evidenciar sinais cada vez mais evidentes de uma indisfarçável desagregação.