Uma Rosa que é parte de mim.
Deixem-me falar-vos da minha avó Rosa.
A minha avó, neste caso materna, é a minha principal referência familiar. Alfacinha como eu, viveu numa época ainda mais complicada para quem não nascia em berço de ouro. Pobre e mulher, só lhe faltou uma cor de pele menos favorável para lhe piorar a condição de portuguesa daquele tempo hostil.
Contudo, os cruzamentos da vida, sem semáforos ou qualquer outro tipo de sinalização, apanharam-na desprevenida e o acidente chamava-se Henrique e viria a ser o meu avô. Era uma adolescente sem qualquer experiência de vida ou formação escolar quando aquele homem bonito, galanteador, mas igualmente casado e com um filho e uma mulher noutro lado qualquer, a abalroou no caminho.
Três filhas, a primeira das quais viria a ser a minha mãe, brotaram daquela relação clandestina, daquela vida que para ele era paralela. Mas para ela era a única que queria e sabia viver.
Durante alguns anos, a minha avó viveu feliz com o único homem que conhecia e, afirmo-o eu, o único que algum dia amou. Fazia sentir-me o seu neto preferido, quase como um filho por ela apetecido e que lhe rasgava no rosto de morena bonita o sorriso que raramente a vida lhe suscitou.
Sobretudo depois do dia em que ele a deixou, fugido para outro sítio qualquer, de outro sarilho dos seus. Sem meios de subsistência, com um estatuto social medonho à época (anos 50) e com três filhas nos braços para criar.
Pouco espaço de manobra o meu avô deixou de si para, de alguma forma, o homenagear. Tudo aquilo que foi resumiu-se para mim na condição de neto bastardo de uma figura distante da qual pouco se falava e que só viria a conhecer a poucos meses do fim.
Mas não é ele o protagonista desta história.
A minha avó, de quem agora vos falo, era uma Senhora e era também uma heroína por ter sido capaz de, no meio do desgosto para a vida que sofreu, e com a ajuda dos poucos que, naquele tempo, ultrapassaram o preconceito e não lhe ofereceram apenas a rejeição, criar a prole que sobrou do seu amor que desertou. Ela não era casada e tinha três filhas, algo que no seu tempo a sociedade não se permitia perdoar.
Apenas depois de criada a mais nova das filhas, a minha avó permitiu-se escapar ao viveiro de recordações, as boas e escassas como as más, imensas, que a amarravam a algo de que pretendia libertar-se. Mudou, sozinha, para uma localidade a mais de 20km de Lisboa, para recomeçar do zero, para poder construir de si uma imagem livre dos condicionalismos que a vida passada lhe impunha, do rótulo que, de forma mais ou menos discreta, a sociedade do seu tempo lhe colava, para poder ser a pessoa que nunca lhe fora permitida até então.
A minha avó, de origens absolutamente urbanas, criava coelhos e galinhas no quintal da sua casa ribatejana, em cujas redondezas acabaria por encontrar um homem simples, com uns olhos de um azul muito claro, enormes, que a tornou no seu objecto de devoção numa relação descaradamente desequilibrada. A minha avó, desencantada, não conseguia disfarçar a desproporção emocional. Mas ele sorria e aceitava-a tal e qual e assim morreria, com uma cirrose a fazer-lhe pagar o preço do apego à bebida que nem ela conseguiu impedir.
A minha avó não era muito de sorrir, mas a mim nunca negava aquele brilho que muito se notava quando me tinha perto de si. Como uma senhora era tratada pela vizinhança nos seus últimos anos, que a avaliava pelo que lhe era dado a conhecer, pela pessoa que ela era, de facto, e não pela força das circunstâncias no caminho penoso que lhe coube percorrer até sentir cumprida a sua principal missão, a obrigação a dois que foi forçada a abraçar como só sua, ainda jovem, aquela luta desigual contra o destino batoteiro que só a espaços lhe permitiu sentir-se genuinamente feliz.
Este resumo que vos deixo, é a tradução da imagem que conservo de uma mulher que me serviu de exemplo em muitos aspectos da educação da minha filha e da forma de como a minha maior fixação foi sempre a de lhe incutir uma sede de independência, uma vontade de vencer pelo seu mérito, pelo seu esforço, e de jamais depender seja de quem for, nomeadamente em termos financeiros. Para nunca precisar de se provar uma mulher de armas perante as mesmas adversidades que a sua bisavó enfrentou.
Era uma pessoa muito digna, uma doce fortaleza, esta avó que partiu quase com a mesma idade que tenho hoje e cuja saudade me enche os olhos de lágrimas, a par do orgulho que sinto por ter partilhado parte da mesma herança genética da pessoa que tento dar-vos a conhecer, para que possam entender o porquê de, acima de tudo, ambicionar ser uma pessoa de quem alguém como ela se possa orgulhar tanto como o seu rasto me permitirá senti-la até ao dia do meu fim.
(Foto Shark)