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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

28
Out16

Em águas de bacalhau

shark

Ao contrário dos peixes, nós humanos possuímos os mecanismos de defesa necessários para evitarmos o anzol. Ou melhor, temos apenas um: a inteligência. Mas coadjuvada pela memória que nos permite aprender lições pela lembrança dos nossos erros (ou dos outros), pela intuição que nos alerta para as ameaças latentes e pelo bom senso que, por exemplo, nos diz que não há almoços grátis e recomenda cautela antes de fincar o dente nas ofertas inesperadas.

Todavia, à semelhança dos peixes, nós humanos somos inevitavelmente atraídos por engodos de todo o género. Mesmo do género dos que já antes nos tramaram ou a alguém próximo. A inteligência que deveria proibir-nos o mergulho na asneira (ou mesmo na sua repetição) nada pode fazer contra a força tremenda dos iscos concretos ou imaginários que a vida nos proporciona.

Nem só as criaturas marinhas morrem pela boca. E os humanos somam à irreflectida dentada na minhoca milagrosa, estranhamente ali pendurada pelo acaso ou por um deus, o uso complementar da boca para, por exemplo, falarem demais. Ou seja, não é ao fecharem a boca mas sim ao abri-la que o anzol os apanha.

Nos seus momentos de lazer, ao destino basta sentar-se na margem com uma cesta e os peixes com pernas nela se enfiam mesmo sem se revelar necessária uma cana. De resto, o destino também pesca com rede, a social, como este blogue é prova. Quem não deixa que apelos como a tentação, a ganância, ou mesmo a estupidez conduzam ao anzol acaba muitas vezes por ser apanhado nas redes que são feitas de palavras e constituem por isso águas traiçoeiras para a maioria.

As palavras são um isco irresistível, mesmo para as pessoas avisadas. E têm a temível característica de funcionarem como uma armadilha bidireccional, funcionando com idêntica eficácia quando são cuspidas como quando são engolidas. Num caso ou no outro, até o peixe graúdo se deixa ludibriar e acaba a dar à barbatana em seco na doca da incoerência ou no cais do disparate.

Contudo, e ao contrário dos peixes, depois de apanhados não vamos parar ao tacho ou à frigideira e, salvo raras excepções, voltamos a mergulhar de cabeça na vida que, como o mar, tem correntes e tem ondas e tem marés.

E por vezes só nessa altura, com a cara esparramada na areia, percebemos que do arrojo da natação nas águas revoltas e mais profundas, sejam do mar ou de um rio, pode resultar darmos connosco encalhados num imenso baixio.

27
Out16

A posta na carapuça

shark

Apesar de não ser dos mais antigos nisto das redes sociais, nunca o sou em coisa alguma, já possuo alguns cabelos brancos virtuais. Daí, os acontecimentos vão-se sucedendo, tal e qual a vida lá fora, e uma pessoa vai percebendo aqui e além as manhas, os padrões de funcionamento da coisa. Até ao ponto de quase se sentir em casa, ou no café com a malta, nesta ou naquela plataforma de convívio e comunicação.

De resto, em boa medida as redes sociais parecem espaços públicos como as esplanadas e até importamos algumas das regras de comportamento analógicas nesses meios. Algumas, não todas. A sensação de impunidade de que se queixam os caretas amuados por terem sido alvo da crueldade virtual, com cada um/a a fazer o que lhe dá na bolha mesmo sendo óbvio que o não faria sem a protecção de um monitor ou de um touch screen, espelha-se de diversas formas e acaba por denunciar as falhas de carácter de quem as maquilha nas redes.

É por demais evidente que, ao contrário do que dá jeito divulgar por parte dos/as artistas que se pintam fabulosos, as boas maneiras são uma característica inata da pessoa e transportam-se para qualquer meio de comunicação que, por ser virtual, continua a ser feito por pessoas e estas não passam a máquinas por falarem via teclado.

Ou seja, as redes apenas reflectem a verdadeira essência de quem as frequenta, desmascaram sonsos e/ou imbecis com ainda maior limpeza do que se consegue na tal mesa de café na qual, reprimidos/as pela presença física dos interlocutores, disfarçam melhor a natureza que online descuidam com base no falso pressuposto de impunidade acima mencionado.

Alguém incapaz de superar a sua futilidade lá fora arrasta consigo essa característica, porquanto se esforce por se pintar pessoa complexa e bem estruturada. Da mesma forma, quem não seja capaz de sentir emoções sérias ou respeitar ligações fortes e/ou duradouras na rua jamais conseguirá o contrário na net. Mais cedo ou mais tarde, aquilo que somos é aquilo que exibimos e nem sempre o boneco nos apanha no ângulo mais favorável.

É um facto que só se ilude (ou deixa iludir) quem quer. Os sinais estão todos lá para quem escrutinar os outros como o faz na vida real (a outra presume-se fictícia, dá mais jeito às diversas espécies de acrobatas da personalidade). De surpresa, como em qualquer situação ou lugar, só é apanhado quem prefere não reparar nos pormenores nos quais o diabo se esconde.

E é por isso que nunca me sinto surpreendido quando alguém, por medo, por vergonha, por desgosto ou simplesmente por falta de consideração pelos outros, abandona uma rede social ao fim de anos, sem uma explicação e, na maioria dos casos, sem rasto que impeça esse desaparecimento de se tornar total e definitivo.

É que, no fundo, na vida vivida fora das redes são ainda mais as pessoas malcriadas. E também abundam cobardes e desertores/as.

16
Out16

A parceria

shark

O sem-abrigo acordou com o pressentimento da presença do outro e de imediato rosnou o seu direito de propriedade, ou de ocupação, daquele espaço público mais abrigado que o outro parecia querer reclamar. Ou pelo menos o sem-abrigo assim o temia, calejado pela vida nas ruas que ao relento funcionava como a selva nas suas leis.

Ficaram assim por uns instantes, a entreolharem-se com desconfiança, sentidos bem alerta para qualquer movimento brusco que denunciasse uma má intenção. O sem-abrigo resmungava impropérios contra a vida em geral enquanto o outro apenas rosnava a sua perspectiva similar. Depois calaram-se de novo, saturados ambos daquele desconforto absurdo que se somava ao que já evidenciavam sentir.

Esfomeado, o sem-abrigo procurou no seu saco de recolha de tesouros uma solução. Restos que a civilização lhe proporcionava de entre os excessos que as circunstâncias lhe negaram algures num passado que preferia nem recordar, refugiado numa loucura própria dos seres humanos tombados na sua condição, alienado na luta por algo tão simples como um pouso mais sossegado para dormir.

Antes da primeira garfada no conteúdo do recipiente imundo que conseguira, há horas de sorte, encher na clandestinidade das traseiras de um restaurante gerido por gente de bem, reparou que o outro continuava ali, de olhos postos no repasto. O sem-abrigo identificou de imediato aquela expressão, a sua de tantos dias menos felizes na busca do sustento para mais um dia por viver. O outro já não rosnava, apenas contemplava à distância, pose entristecida, aquele recipiente mágico que lhe parecia uma cartola com coelho à caçadora pronto a saltar para o seu estômago dorido pela sensação quase permanente de vazio.

O sem-abrigo engoliu em seco, atordoado pela sua reacção, apanhado de surpresa por uma emoção que julgava enterrada na mesma sepultura do passado que recusava lembrar. Deu consigo a procurar no velho saco a tampa de uma lata que servia para o efeito na perfeição.

Dividiu a meio a ração disponível e aproximou do outro a metade que lhe oferecia enquanto refilava entre dentes contra si mesmo aquele assomo de generosidade que há muito não experimentava. O outro, receoso mas numa ansiedade indisfarçável, avançava centímetro a centímetro para o alvo da sua cobiça, desconfiado, esfomeado, desesperado pela confiança urgente de sentir naquele instante em que precisava avaliar o risco a ser assumido. O sem-abrigo já comia e olhava de soslaio para o outro, acabando por lhe fazer sinal para avançar com uma mão. E o outro avançou e partilhou com ele aquela refeição magnífica, visivelmente grato pelo gesto e pela companhia.

 

Seria, de resto, esta última que os uniu quando descobriram ambos que já não lhes doíam tanto o abandono e a solidão.

 

homeless and dog.jpg

 

04
Out16

São sombras

shark

São sombras. Projectadas numa das paredes de um espaço hermético para distraírem a solidão, desenhadas por artistas da ilusão que vivem dos olhares alheios que lhes mitigam a sede de um protagonismo qualquer.

Histórias mal contadas, sombras de homem ou de mulher, disfarçadas de coisas a sério numa vida de realidades magoadas sem querer, porque tudo o que se faz de errado era só a brincar e cada sombra mal definida é apenas a culpa solteira de uma má interpretação.

Esboços grosseiros de uma representação na feira das vaidades escondidas nas entrelinhas de um argumento para o filme a preto e branco de sombras que não conhecem a cor e parasitam os arco-íris na ingenuidade da imaginação.

São sombras. Camufladas em paredes mal pintadas, reféns da escuridão.

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