Num país em queda livre os paradoxos multiplicam-se e as piruetas nos destinos de quem fica mais à mercê dos humores económicos criam lógicas de raciocínio tão distorcidas ao ponto de se criarem cenários de aparente esquizofrenia colectiva.
Em causa está um ponto de viragem que parece ter apanhado toda a gente com as calças na mão. A crise, como a chamamos, que parece ter-se instalado confortavelmente no ponto mais flat da onda sinusoidal dos ciclos económicos que dantes funcionavam como as montanhas-russas ou como os interruptores, escaqueirou isto tudo e parece eternizar-se em boa medida pelo desacerto dos decisores.
É impossível olhar este país no estado em que se encontra e reconhecê-lo nas proezas impensáveis que nos ensinavam nas escolas antes de acontecer Abril. Afonso Henriques demolidor, um condestável que até era santo, uma padeira de Aljubarrota indómita, caravelas de partida para um mundo enorme por descobrir.
Éramos nós, sim. Os garbosos herdeiros do sangue lusitano, a Metrópole de um império colonial, um país pequeno sobrelotado de heróis, de patriotas, de conquistadores. Até tínhamos o Camões, para dar o toque intelectual a uma nação de campónios como a quiseram e fizeram ao longo de 48 anos, mais o orgulho pela Pátria capaz de impressionar-se a si própria na falta de reconhecimento dos que nos olhavam com indisfarçável desdém.
Veio Abril e veio a Europa a seguir, na ressaca do lado menos bom de uma liberdade que também serve para desgovernar. Foi uma reviravolta de sonho e de repente já sonhávamos olhar para países como a França ou a Alemanha de igual para igual.
E depois alguém meteu água e começaram a surgir à tona maroscas, disparates, alarvidades inconscientes daqueles a quem entregámos o poder e, pior ainda, daqueles a quem eles o renderam depois.
De repente, o sonho esboroou-se como uma miragem para uma generosa fatia da população.
Leve já, a gente empresta, tudo aquilo que pagará bem caro depois
É assim que se destrói uma ilusão. Com ela abate-se sobre muitos uma realidade tão crua como a passagem súbita para uma outra dimensão. Avós reformados a sustentarem os netos e os filhos desempregados sem saberem como liquidarem uma catrefada de prestações. Era inimaginável poucos anos atrás, enquanto os mais poderosos desbaratavam milhões em seu benefício num equilibrismo sem rede para as camadas mais desfavorecidas da população, esta inversão dos papéis.
E depois o anúncio mil vezes repetido da iminência de uma catástrofe tão imensa como a falência cujo espectro se instalou sobre todo um país.
É complicado lidar com estas quedas abruptas depois de crescermos a ouvir contar as histórias dos nossos avós emigrados ou mesmo dos que por cá ficaram a construir as lendas familiares de self made men. Parecemos tartarugas tombadas de costas, incapazes de reagir à pressão deste fracasso em câmara lenta que vai arrastando aos poucos cada vez mais de nós, pelo efeito dominó de uma conjuntura aziaga amplificada pela ganância de uns poucos e pela inépcia dos líderes que elegemos para a enfrentar.
Parecemos baratas tontas no cimo de um icebergue em pleno hemisfério sul para o qual, surpresa, a Europa antes generosa anfitriã do nosso pequeno mercado nos quer empurrar.
Uma soma de traições muito acima das nossas possibilidades
Somos nós como o país. Acusados de preguiça, de desleixo, de incapacidade para gerirmos os nossos destinos, de desgoverno, de falta de tudo aquilo que enchia de orgulho patriota a geração que sabia o que a deixavam de um passado sem mácula, historicamente expurgado de tudo quanto o pudesse questionar. Um fracasso, como nos querem pintar, enquanto povo no seio de uma Europa dos ricos e dos louros e dos sempre melhores que todos os outros burros e calões.
É difícil de engolir um rótulo assim, depois de tantos de nós terem investido umas décadas em carreiras ou em negócios que acabaram hipotecados por malabarismos na alta finança que lhes competia também, a esses europeus bem sucedidos à nossa custa, os europeus de segunda com salários de gente inferior, controlar.
Assistimos assim ao desfalecimento colectivo de um país com séculos de História, impotente para travar uma decadência provocada a meias por factores tão externos como uma bolha imobiliária e tão internos como o pontapé eleitoral em falso que a maioria deu nuns alegados arrogantes e incompetentes para confiar o poder a uns comprovados incapazes e imbecis.
Arriscamos assim o nome gravado nos anais como fazendo parte de um grupo de portugueses de merda que algures num ponto do tempo permitiram que uma conjuntura marada mais a soma resultante de uma caótica conjugação de factores, nomeadamente as motivações interesseiras aquém e além fronteiras, nos arrasasse o que de mais nos pode valer nesta fase para darmos a volta à situação, os meios de produção indispensáveis para a recuperação, quase a partir do zero em caso de desagregação do projecto europeu, da soberania, do controlo efectivo do nosso país.
Neste contexto que acima desabafo, sinto-me preparado para enfrentar a saída da moeda única mais o diabo que carregue quem nos deixou atolar assim.