Nem um grande amor pode ser tido como um dado adquirido. Requer cuidado, requer atenção, exige uma vontade permanente de o cultivar como algo de precioso, de absolutamente fundamental enquanto pilar da felicidade como a entendemos e gostamos de sentir.
Contudo, se o amor é indissociável de uma vida feliz como a sonhamos e queremos usufruir, cada pessoa desenvolve ao longo da existência outros amores que igualmente entende como essenciais. Os valores que nos norteiam, construídos tijolo por tijolo ao longo do caminho pela educação, pela cultura, até pelas contingências com que a vida nos confronta, circunstâncias e conjunturas, devem estar presentes no quotidiano para que possamos sentir-nos em casa no enorme lar que um país constitui.
Como qualquer pessoa, defini para mim mesmo os requisitos que considero indispensáveis para poder viver uma vida plena e feliz na terra onde nasci e foi simples a definição de prioridades, sobretudo porque não esqueci o tempo em que vivi antes da Revolução de Abril.
De todos os medos que o futuro me acena, de todos os papões que assombram o amanhã da Pátria onde ambiciono ver crescer a minha filha, só o espectro de uma qualquer ameaça à liberdade consegue aterrorizar-me. Ou mobilizar-me para a luta, qualquer luta, por algo que acredito ser um valor digno de preservar à custa de uma vida se necessário.
Sem liberdade a paz não é possível. O vazio que a falta de liberdade implica é preenchido pelo medo, pelo ódio, pelo abuso do poder por parte daqueles que o controlem pela força que é o único meio de impor aquilo que um povo considere injustiça.
Tenho a sorte de ter experimentado na maior parte da minha passagem o gosto da liberdade que milhões de seres humanos não conhecem nas suas terras e muitos, a esmagadora maioria, dos meus antepassados portugueses nunca chegaram a provar. Sou privilegiado por essa coincidência de ter nascido no tempo certo e uma das minhas maiores alegrias é a de poder ter esperança de que a minha filha não conhecerá outra realidade que não aquela que me compete em seu nome preservar, tal como deverá ser essa uma prioridade para os meus conterrâneos, sem excepções.
Porém, as lições da História ensinam-me a nunca tomar a liberdade como certa.
Uma morte que a Democracia já experimentou
Uma crise tão profunda como a que atravessamos é demasiado parecida com outras que a precederam e apanharam desprevenidas pessoas que julgavam a liberdade intocável até ao momento em que a viram sucumbir às mãos de regimes prepotentes ou mesmo ditatoriais. Aconteceu um pouco por todo o Mundo e aconteceu, prolongando-se por quarenta e oito anos, em Portugal.
Parecia impossível aos democratas de toda a Europa uma hecatombe como a que se abateu sobre todo um continente quando, nos anos 30, as circunstâncias abriram caminho ao desespero que cega as populações e as arrasta para armadilhas cujas consequências se fazem sentir tarde demais para impedir o pior.
Parece impossível agora. Mas aos poucos constatamos que governos democraticamente eleitos reagem, amedrontados, com força cada vez mais descontrolada à contestação popular daqueles que, igualmente amedrontados, se juntam nas ruas em busca de uma liderança mais forte, mais capaz de bater o pé a tudo e a todos quantos permitem o declínio que destrói vidas porque as torna insustentáveis.
Parece impossível, mas palavras como fome e miséria regressam ao Portugal da Europa dos ricos, como já fazem parte do vocabulário na Grécia e mesmo na Espanha que tantos invejavam na abastança até há pouco tempo atrás.
As vidas despejadas de pessoas despojadas de esperança
Uma crise extrema posições a um ritmo absolutamente impossível de prever ou de controlar. Nesse contexto, os valores, mesmo os mais importantes, assumem o papel de simples figurantes num filme que pode ser de terror.
A liberdade não mata a fome nem parece proteger-nos, com o poder entregue a gente incapaz de se fazer respeitar e de mostrar competência para dar a volta ao texto, de um futuro imediato que é feito de medo, de ansiedade, de colapsos individuais que se multiplicam ao ponto de se temer a falência de toda uma nação com tudo o que de mau isso implica.
É este o terreno fértil para todo o tipo de extremistas, para toda uma escória de oportunistas que aguardam na sombra as condições reunidas para erguerem das cinzas uma voz sonante, mais grossa, mais radical, perante a impassividade dos que lucram em qualquer circunstância, o desnorte dos que fingem governar sem qualquer capacidade decisória em matérias fundamentais e o desespero de multidões cada vez mais permeáveis à promessa de soluções miraculosas para os seus dramas pessoais.
É este o caminho traçado, como num passado não muito distante deste país e no presente de tantos outros, para o fim da liberdade, mesmo que de forma mais discreta, menos violenta, depois de degradados os mecanismos democráticos que a podem proteger.
É isso que está a acontecer, sem que a maioria se dê conta. Cada vez mais polícia, cada vez mais censura, cada vez menos confiança entre eleitores e eleitos, cada vez menos esperança nas alternativas que o sistema disponibiliza. Passo a passo até ao vazio de poder que é o de um poder eleito e nem assim reconhecido como legítimo por se revelar incapaz, em ambos os lados do espectro político, até se instalar o caos.
É esse o rumo seguido, como o passado o provou e o presente já ilustra na Grécia fascista que desponta e que em Portugal é mais de se produzir sem ondas, no discurso austero e musculado de figuras discretas que emergem quando se esgotam as forças a qualquer oposição para as denunciar enquanto caciques capazes de fazerem tábua rasa de valores que soam dispensáveis e, ainda pior, ficam ligados ao fracasso que os párias aproveitam para manipularem vontades e consciências até, repito, ser tarde demais para os impedir.
Por vezes, mesmo um grande amor sucumbe a pressões esmagadoras, a medos constantes, ao desespero permanente de pessoas sem emprego, sem dinheiro, sem perspectivas.
E tal como acontece com a liberdade, depois de perdido torna-se quase impossível de recuperar.