A POSTA QUE HOJE AINDA PODEMOS ESCOLHER
Deus quis que, entre os homens, uns fossem senhores e os outros, servos, de tal maneira que os senhores estejam obrigados a venerar e amar a Deus, e que os servos estejam obrigados a amar e venerar o senhor (…)
Saint Laud de Angers
Assim se resumia, preto no branco, a definição das hierarquias numa sociedade feudal.
Eram simples, à época, estas questões melindrosas do lugar que as pessoas devem ocupar em função dos critérios de outras pessoas que reclamam os melhores para si mesmas.
Havia uma elite, os senhores, e havia o resto da malta, os servos, numa relação legitimada (e certamente abençoada) pela vontade de Deus.
Não havia muito a pensar com as coisas postas dessa forma: Deus quis e a partir daí fim de papo.
Depois era só aceitar a lotaria do destino e rezar (a probabilidade era tão escassa que só mesmo com milagres) para nascer no lado certo desta arrumação básica das prateleiras sociais.
Só em 1789 o mundo produziu algo de significativo para contrariar o espírito da coisa no escrito acima, depois de séculos mergulhados numa mera disputa de poderes entre os diferentes senhores e na qual ao povo (o tal resto da malta) competia sempre servir de carne para canhão.
Mas como a História sempre nos ensinou, os mecanismos de poder bem sucedidos nunca desaparecem em definitivo. Ficam latentes, à espera do momento certo, das circunstâncias mais favoráveis para ressurgir, noutras mãos, com outros rostos, com as mutações necessárias para se adequarem aos propósitos dos mais poderosos em cada tempo e em cada lugar.
Quando na citação acima substituímos Deus por dinheiro e olhamos em nosso redor é impossível reprimir uma certa inquietação. A chamada agenda neoliberal tem paulatinamente removido do caminho os obstáculos a um feudalismo em versão moderna, igualmente fascista mas mais civilizada, mais consentânea com os estragos que os últimos dois séculos provocaram nas contas dos que ganham mais. Mas é um facto que o poder político surge cada vez mais distante, para lá das muralhas policiais e das barreiras à Informação que os preservam da ira legítima dos cidadãos quando se percebem abusados ou vítimas de um embuste, tal como é incontestável o primado do dinheiro nas decisões seja de quem for, seja onde for, amado e venerado ao ponto de merecer o sacrifício de vidas, imensas, como só aos deuses se permite sem contestação.
E eles, os senhores da finança que controlam os senhores da política e da justiça e todos quantos procuram cobertura sob a capa de um estatuto superior ao da maioria dos cidadãos, fomentam porque lhes convém essa organização tão simples: senhores e servos. Ou senhores e trabalhadores por conta de outrem, desde que devidamente amansados pela desautorização do movimento sindical, pela precariedade dos postos de trabalho, pelo apelo ao consumo desmedido, pelo condicionamento ou mesmo manipulação da informação que mais pesa na opinião pública, pela degradação sistemática e objectiva dos mais sólidos pilares da Democracia e por todos os meios que possam tornar cada cidadão refém e, se possível, devoto a essa causa duvidosa.
Quando os sinais se somam e continuamos a ignorá-los temos razão para nos assustarmos. Podemos ou não levar a sério as perspectivas mais desconfortáveis e pessimistas, consoante o nosso próprio ponto da situação quanto àquilo em que a nossa vida se tornou no meio da aceleração e da alienação que quase nos são impostas como um preço a pagar pela felicidade em que alegadamente se tornou a integração na sociedade, implicando esta a posse de bens que funcionam como as bijutarias com que compraram Manhatan aos indígenas.
A esses privaram de um pedaço de terra. A nós, compram-nos aos poucos a alma. Ou, quando tal caminho não resulta, vergam-nos pelo medo da exclusão social a que nos condenam se não conseguirmos atinar ou se a conjuntura for desfavorável e se necessário desertam, mesmo que estejam em causa grandes aglomerados populacionais, como o exemplo da cidade de Detroit tão bem documenta e as várias nações miseráveis do mundo gritam nas nossas caras viradas para o lado, problema dos outros que a nós jamais atingirá, enquanto perdemos o controlo das nossas vidas, a soberania das nossas nações e tudo aquilo que nos possa defender do regresso ao passado numa das suas memórias mais desprezíveis.
E é sempre no presente que se constroem as várias Histórias possíveis.