Da mesma forma que me revolta a tentativa torpe de descartar para cima dos cidadãos um descontrole das contas do país por, alegadamente, andarmos todos a viver acima das nossas possibilidades, uma falácia digna de gentinha sem vergonha nem maneiras se tivermos em conta o despautério generalizado por parte da banca que usou e abusou do vínculo de confiança com os seus clientes para os endividar em larga escala, não posso deixar de reparar no desaparecimento súbito de mais de cem mil crianças das declarações de IRS quando passou a ser obrigatório o número de contribuinte para a miudagem.
No momento de enfrentarmos todos as consequências de uma crise internacional que destapou o covil da multiplicação de asneiras, de maroscas e de excessos cometidos ou apenas permitidos por quem nos governou nas últimas décadas toda a gente se vira contra os políticos, e com razão, como responsáveis pelo estado a que as coisas chegaram.
Todavia, se aos governantes se podem imputar responsabilidades e culpas óbvias é preciso uma grande lata por parte de boa parte da população para apontar o dedo aos de cima e passar a esponja sobre os seus pecados individuais.
A trafulhice do cidadão comum, sem dúvida com o beneplácito ou pelo menos a distracção por parte de quem tem por missão legislar e fiscalizar, é multiplicada por milhões e tem muito, mas mesmo muito, peso no desequilíbrio das contas deste Estado em aflição.
É isso que se revela em cada uma das iniciativas destinadas a acabar com o regabofe: são sempre aos milhares os beneficiados por baixas fraudulentas, por subsídios injustificados, por pensões ilegítimas, por uma lista infindável de esquemas, de truques, de aldrabices como esta invenção de falsos dependentes a cargo que poupa uns trocos no IRS a pagar. É o Estado que estão a lesar, para além de falsearem o jogo da vida por ganharem de forma ilegítima mais do que os seus colegas de trabalho decentes e que não aldrabam o país.
E não cola a ideia de que o mau exemplo vem de cima, pois venha o exemplo de onde vier só o segue quem quiser.
Por isso já nem levo a sério as conversas de café nas quais os inocentes aos magotes se queixam dos maus, dos poderosos que enganam o povo, quando lhes conheço de ginjeira as múltiplas jogadas em que envolveram ou ainda envolvem os seus quotidianos.
Os outros é que fazem, os outros é que são e tudo de errado que fazemos é lavado com a água benta das coisas com justificação. Há sempre uma há mão, tal e qual os tais outros malandros, os lá de cima, nos oferecem as suas que são quase sempre para o bem do país.
Essa carga não pode ser aligeirada dos lombos de todos quantos se comportaram como burros, tão cegos pela ganância como os mandantes que criticam e invejosos do sucesso de outros larápios (burla equivale nas consequências a roubo). Venderam a alma por trocos, no fundo, e não têm moral para apontar o dedo seja a quem for.
Um país que não consiga encontrar defesas contra estas mentalidades mesquinhas, estas manias egocêntricas de egoístas munidos de esperteza saloia bem sucedida em tempo de vacas gordas, é ingovernável. Qualquer outra interpretação do fenómeno é um investimento irresponsável numa forma de estar que antes não nos servia e agora é quase uma traição.
E essas não se medem em função do tamanho do prejuízo causado a uma Pátria à qual já pouco resta para roubar.