A memória colectiva pode revelar-se curta em muitos aspectos, à semelhança do que acontece na reacção comum dos indívíduos que a compõem, sobretudo quando o assunto é unanimemente repulsivo ou apenas algo embaraçoso.
O embaraço até pode ser ligeiro, ah e tal isso já foi há muito tempo e as coisas eram diferentes nessa altura e coiso, mas nota-se o desconforto com que todos encaramos as piruetas que a vida acaba por a todos nos obrigar. Nem que seja pelo efeito do progresso, como é o caso da mudança radical de atitude perante o custo a suportar pelo acesso às emissões de televisão.
É preciso já ter virado muitos frangos para lembrar esses dias, tantos que haverá quem até questione a verdade dos factos como eu e muitos outros os vivemos. Todavia, no meu mundo de classe média-baixa existiam mais terrores para lá da pide e da miséria que grassava em bairros da lata que se encontravam ao virar da esquina, na periferia e até no perímetro da capital.
Um desses terrores, ainda mais profundo do que o dos traficantes de droga que a ofereciam em rebuçados para conquistarem novos mercados, era o das alegadas brigadas de detecção de televisores sem a taxa em dia.
Essas brigadas que nós, putos de então, temíamos por tabela eram unidades móveis que se dizia estarem equipadas com sofisticados aparelhos que apanhavam umas ondas quaisquer emitidas pelos televisores em funcionamento.
E o povo acreditava tanto nos equipamentos xpto como na capacidade de manter registos de todos os lares com a taxa em dia numa altura em que os computadores em Portugal só faziam parte das séries de ficção científica.
A verdade dos factos, a tal que pode perturbar os mais sensíveis à incoerência que a passagem do tempo tantas vezes nos impõe, é que bastava o boato de que andava nas redondezas um carro suspeito com uma antena mirabolante (parte do tal detector ultrasónico de corrida) e a malta por taxar, a esmagadora maioria, corria às salas de estar e jantar para desligarem a televisão, em pânico não sei se pela dimensão da multa se pelo estigma do prevaricador.
O povo temia ainda mais a fama de incumpridor, susceptível de evocar algum tipo de rebeldia, do que a martelada de uma coima que para justificar tanta miúfa deveria ser ainda mais astronómica do que a viatura marciana com a antena parecida com um radar.
A parte chata de reavivar estas lembranças do jurássico é a da malta que nesses dias fugia aos inspectores da taxa poder ser a mesma que hoje acolhe de forma voluntária os delegados comerciais dos diferentes operadores na guerra da televisão por cabo para escolher a tarifa mais adequada às suas necessidades de consumo televisivo pago em nada suaves prestações mensais e que, mesmo com juros e correcção monetária, fariam corar de vergonha os que não conseguiram convencer os telespectadores a pagarem uma quantia quase simbólica para sustentarem o serviço público.
E de caminho sempre tínhamos ajudado a pagar as tais sofisticadas máquinas imaginárias com faro televisivo que hoje dariam um jeitão aos nabos que instalaram o pandemónio no controlo de audiências...