Via naquela casa esventrada uma pessoa abandonada pela sorte à sua e que afinal era nenhuma.
Via nos sulcos escavados pelo tempo na fachada as rugas de uma pessoa envelhecida, algures esquecida, à espera do regresso de um irmão imaginário ou de um amigo ilusório para ludibriar a solidão.
Via nas janelas escancaradas, por detrás, os farrapos de cortinas deixadas ao vento, como almas fustigadas pelo tempo até preferirem nem se verem espelhadas naquelas janelas como se fossem elas os olhares de pessoas que via, imaginadas, pessoas escondidas por detrás das cortinas para poderem espreitar a vida dos outros a passar pela sua.
Via essa vida no meio da rua, presente, e tentava transportá-la com a sua mente para aquela casa abandonada, a falsa memória de uma vida passada em todas aquelas divisões coloridas em tons desmaiados pela luz encoberta do sol.
Quase ouvia cantar um rouxinol preso na gaiola agora desmantelada, patética, presa a um pedaço de parede por cair daquela casa deixada ali para morrer. A realidade que não queria enfrentar enquanto sonhava que via naquela casa destruída uma pessoa cheia de vida que a sua mente, crueldade, converteu numa imensa saudade para preencher o vazio criado, de repente, sem saber que deixava pendente uma vida a necessitar de reparações, uma alma esfarrapada por emoções como a que via no espelho, por detrás dos seus olhos encharcados pelas ordens de despejo ali reflectidas.
Sentia que com as almas deixadas ao relento, como as das casas abandonadas ao tempo, também as pessoas podem acabar demolidas.