A MINHA GRANDE RESOLUÇÃO PARA 2011
É ver se consigo formular duas.
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É ver se consigo formular duas.
Foto: Shark
- Juro, querida! Fiquei retido em Orly por causa do mau tempo e por isso tive que deixar lá a carga, fui lá agora passear com cegonhas francesas...
Então a pessoa até tem um carro usado e com bastante quilometragem, mas muito estimado e com as revisões sempre feitas a tempo e horas e o óleo mudado quando deve ser e tudo mais. E um dia levanta-se de manhã, veste uma bela fatiota para ir a uma festarola qualquer, chega ao carro, dá à chave de ignição e népia.
Pois é, a pessoa sente isso quase como uma traição, uma partida de mau gosto do destino.
É precisamente o que acontece quando um gajo enfrenta um daqueles flopes de que nem queremos ouvir falar. Porque na maioria dos casos é coisa acerca qual nada sabemos nem queremos saber.
Nem vale a pena artilharem o comentário da praxe: mas como é que o tubarão sabe o que se sente na sequência de um flope? Sim, o tubarão, esse magnífico e muito funcional exemplar do género, já assumiu sem tretas que sim, não é (ele, o outro) alheio a esse fenómeno. E só falo no assunto precisamente por ser tão rara em mim a experiência que nem de perto teve hipótese de se banalizar e deixar de ser tema de conversa.
Agora que já acertamos os detalhes mais melindrosos da questão, volto à minha abordagem automobilística da coisa, com a vossa licença.
Na verdade, a pessoa nem sabe de há de rir ou chorar quando o motor de arranque se esganiça todo e as velas até produzem faísca em profusão mas nada. A viatura abana toda, parece sempre que está quase quase a pegar e até a esperança parece arrebitar, porquanto ilusória. E de repente um gajo tem a malta (na maioria das vezes só uma pessoa, claro) com os olhos postos no veículo como se de um chasso velho se tratasse. Quer dizer, a pessoa, a mirone, até pode nem fazer outro olhar que não o de perdida de gozo mas a disfarçar, mas quem se vê com os dedos na chave e o motor em silêncio vê olhares comprometedores em todo o lado.
É que para qualquer gajo, o seu... carro é sempre o melhor do mundo. Mesmo um Fiat Uno assume proporções de limusina e basta um spoiler traseiro para se transformar de imediato num carro de corrida. E é isto que acrescenta desilusão à surpresa (porque quando o carro não pega parece sempre que acontece à pessoa pela primeira vez) e cria um enorme embaraço ao proprietário do bólide, ainda que a reacção de quem fica pendurado/a relativamente à boleia prometida seja complacente (deixa lá, isso podia acontecer com um BMW e assim...).
Na prática, um gajo exige absoluta fiabilidade ao seu automóvel. Pelo menos enquanto não atinge certa idade e já não há peças sobressalentes disponíveis para o modelo nem intervenção, digamos, mecânica que lhe valha. Só aí a pessoa se convence de que não vale a pena investir mais na máquina e dedicar-se à pesca, com demasiadas falhas na ignição para se poder acreditar que o motor não gripou.
Além disso, o condutor masculino tende a identificar-se em demasia com o objecto de culto que a viatura representa e acaba por lhe vestir os fracassos como seus, numa espiral de frustração que ainda acaba por acrescer factores de mau contacto como o frio excessivo ou outros. Também por isso o flope tradicional (não é o do motor que vai abaixo a meio do caminho - tema para futura posta, é o do que nem chega a pegar e não vai lá sequer de empurrão).
Esta questão acaba por justificar o argumento de alguns que, possuindo apenas um 2CV que os aceleras adoram ridicularizar pelo tamanho e pela potência do motor, defendem que tamanho e até potência não são mesmo documento.
É que podemos até ter um Ferrari dos melhores mas quando damos à chave e o motor não pega dávamos o dedo mindinho para termos o tal 2CV, um carro tão desenrascado que se tudo o resto falhar até se pode fazer pegar à manivela...
Com um ciclo de vida inferior ao de um comum animal de estimação, um blogue pode transmitir uma noção de envelhecimento precoce. Regra geral isso acontece quando percebemos que os blogues do nosso tempo estão ou chatos, ou mortos ou entrevadinhos numa existência miserável à espera da estocada final, da gloriosa posta de despedida que funciona como uma espécie de velório onde se reúne a malta que só raramente visitava o defunto mas calhou tomar conhecimento do óbito previsível.
Desde que o Facebook se tornou numa moda é mais fácil enriquecer o vasto obituário de blogues.
E uma das conclusões que se tiram à vista desarmada é a de que, por norma, raramente existe uma posta mais comentada do que a do anúncio de despedida.
Esqueci-me completamente dos votos de ano novo, a sério. Aliás, nem uma análise do ano que findou me deu para fazer, negligente me confesso ao ponto de quase me ter passado ao lado a euforia obrigatória (se não quisermos passar por uns grunhos) dessa transição mágica do calendário que constitui pretexto para uma espécie de alucinação colectiva que sinceramente não tenho forma lógica de explicar.
Existem tradições absolutamente intocáveis na passagem de ano, mais até do que a tal alegria imposta e que devemos forçar-nos por exibir. Entre elas destaco o balanço do ano passado e os votos e/ou as previsões para o ano futuro. Ou seja, é suposto conseguirmos passar uma esponja por toda a merda que fizemos ou nos aconteceu enquanto, em simultâneo, delineamos uma espécie de plano de actividades para o período de 365 dias que nos cumpre enfrentar a seguir.
É isso que parece competir a quem é do tempo em que a festa se fazia nas janelas com as tampas dos tachos para manter acordado o vizinho bêbedo do lado e, ouvi dizer, para afugentar os espíritos maus que nos infernizam a existência ao longo de um ano normal.
A malta desdobra-se em esforços para garantir um local e companhia para esse maravilhoso dia de catarse em combinação com a invocação dos melhores auspícios mais a reunião das promessas por fazer mais as que ficaram por cumprir nos últimos anos, sempre com uma expressão de felicidade (ainda que induzida por excessos líquidos que a época parece tolerar) que deixe bem clara a alegria interior que a sociedade decretou. Um pouco como o espírito do Natal mas seguramente mais imbecil.
Não me interpretem mal, eu gosto de me sentir feliz, tal como aprecio imenso ficar com a noção de que qualquer espaço de tempo foi bem gasto por mim. Da mesma forma podem contar com a minha imensa vontade de fazer (este ano é que é) tudo aquilo de que me acreditam capaz ao ponto de eu próprio me iludir nessa intenção.
Mas cada vez mais me é complicado produzir esse resultado em resposta a uma convenção.
Tentou cobrir-se com os escudos, o seu e o do companheiro morto ao seu lado, quando mais uma nuvem de setas começou a rasgar o céu com o seu zunido habitual. Não tardou a ouvir a pancada seca do metal por toda a parte, nos escudos, nos elmos, nos corpos, no chão. Ouviu os gritos também, dos mais azarados, dos que se viam trespassados pelo arsenal defensivo daqueles que no interior do castelo tentavam impedir a invasão.
Ajoelhado no chão, ele percebeu que se aproximava a hora do assalto final quando vinte homens se dividiram em duas filas e levantaram o enorme aríete apontado ao portão principal. Ouviu as ordens para desembainhar espadas, válida para todos quantos ainda combatiam, todos quantos ainda podiam avançar para o passo seguinte daquela batalha sem tréguas que há dias mantinha o seu exército acampado num cerco montado para fragilizar os defensores, a quem os mantimentos há muito já deveriam escassear.
Estariam certamente enfraquecidos, apesar da resistência que ofereciam, a luta que persistiam em manter acesa porque teriam tudo a perder uma vez concretizada a ocupação por parte daqueles a quem chamavam inimigos mortais.
A primeira fileira, lanças levantadas, já estava ordenada por detrás dos calmeirões designados para embaterem com o pesado aríete na última barreira entre o lado de fora, gente determinada em acabar com o último bastião defensivo daquela nação orgulhosa, e o lado de dentro, feito de pessoas de pedra como pareciam aos que viam outros soldados verterem o seu sangue naquele solo estrangeiro e raramente conseguiam assistir à morte de um combatente anfitrião.
O estrondo das pancadas no portão sobressaltou-o, como aos restantes, e certamente atemorizaria ainda mais aqueles que se apressavam a concentrar esforços naquele acesso prestes a colapsar à força de braços, homens enormes que urravam como animais e coordenavam dessa forma a conjugação de movimentos que os tornava impossíveis de deter naquela altura.
A madeira cedia, aos poucos partia e saltavam pedaços a cada nova investida enquanto das ameias já começava a jorrar o azeite a ferver que queimava os mais próximos da muralha como bafo de dragão.
Sentiu acelerar o coração quando a primeira brecha abriu e um pedaço de luz se viu do interior, a iminente entrada do invasor no perímetro defendido com bravura por homens de armas como ele, guerreiros recrutados pelos senhores endinheirados a quem prestavam vassalagem em troco de esmolas que para a maioria pareciam fortunas pois bastavam para matar a fome aos seus.
Era essa a única motivação que os levava a partir para batalhas que nunca percebiam na sua verdadeira dimensão, diziam-lhes apenas que só a vitória interessava ou seriam eles a ocupar o mesmo lugar dos seus inimigos mas nas ameias dos castelos no Reino que os enviara para ali.
O portão cedeu por fim e os lanceiros avançaram como uma horda de bárbaros enlouquecidos pelo sangue e pela dor que os rodeava, pela sobrevivência que os obrigava a escolher entre matar ou morrer e era fácil a decisão.
Entrou na segunda vaga de assalto, entalado entre parceiros que se apertavam na passagem, atrasados no avanço pelos cadáveres dos que tombavam a cada metro conquistado, o inimigo todo concentrado no combate corpo a corpo sem margem de manobra para distracções ou pequenas indecisões que resultavam quase sempre no som horripilante da carne rasgada pelos instrumentos afiados de metal.
O inimigo era mesmo mortal, como descobriria na primeira estocada que daria em cheio no pescoço desguarnecido de um soldado da guarnição. Outros dois lhe seguiriam o destino, abatidos por golpes certeiros dos mais hábeis guerreiros que agora tomavam posições no espaço que reclamavam agora para si.
E foi então que o seu olhar se fixou no rosto de um oponente que pelo menos aparentemente parecia em dificuldade para manobrar a espada tão pesada que lhes competia utilizar. Perdeu-se naquele olhar quando a percebeu surpreendente, uma mulher demasiado valente que lutava entre homens com a fúria estampada na expressão e ele colado ao chão, demasiado perto para evitar o golpe que haveria de o matar.
Estendido no chão a sangrar, assistiria entretanto ao preciso momento em que a jovem guerreira ajoelhou finalmente, tombando mesmo à sua frente com uma seta cravada nas costas que a sentenciara com pena capital.
De olhos abertos, consciente, ela deixou-se ficar, resistente, à espera da morte que a levaria também para o céu que lhes prometiam quando as armas benziam antes de a batalha começar.
Morreram assim a olhar um para o outro, como que hipnotizados, com os dedos tingidos de vermelho entrelaçados num gesto derradeiro de compaixão.
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