Lembro-me da dimensão gigantesca daquela parede de metal, ancorada no cais onde a multidão imensa se entregava a uma emoção colectiva, intensa, mãos dadas, pessoas abraçadas, a esperança e o medo à mercê da maresia e dos salpicos salgados de lágrimas e de mar.
O Niassa, esmagador, carregado de jovens recrutas, fardado para cumprir a missão de os transportar para outro lado, para outra dimensão, onde a morte espreitava todos e cada um de quantos acenavam adeus perante os olhares angustiados de mulheres, de filhas ou de mães.
Lembro-me, bem miúdo, dos beijos intermináveis daqueles que não conseguiam resistir à pressão no momento de partir por um pedaço da Pátria reclamado por outros que não a sentiam como sua, casais separados com filhos de colo ou apenas com planos adiados para a sua concepção.
A bordo daquela embarcação, centenas de portugueses azarados porque nasceram nos dias errados que os arrastariam para uma guerra sem quartel, muito novos, com os nervos à flor da pele arrepiada agora pela estranha sensação que lhes acelerava o coração na medida exacta do seu sentir.
Alguns pareciam prestes a explodir, num pranto, enquanto viviam aquele momento com a dignidade possível perante a ameaça terrível, adeus e até ao meu regresso, a Deus confiados nas orações dos que permaneciam ancorados a uma fé que para alguns de pouco valeria quando das colónias chegavam as notícias piores.
Lembro-me bem das suas expressões ausentes quando já se imaginavam em terras distantes, à mercê da lotaria da vida, na roleta russa do acaso que a tantos estropiara e uns quantos até matara em emboscadas cuidadosamente preparadas para enfraquecer o colosso militar que era afinal um destroço das memórias de antigas e gastas glórias que o país tentava em vão, atordoado pela alucinação nacionalista, reviver num conflito imbecil porque impossível de vencer naquelas circunstâncias.
As vidas sacrificadas por um ideal ultrapassado, por um mote do passado que erradamente se incutiu e a alguns destruiu o futuro que poderiam vir a ter quando acabaram por morrer no solo africano que simbolizava o engano de quem o acreditava Portugal.
Lutavam (assim o julgavam) pelo Bem mas eram vistos como um mal desnecessário naquelas terras para onde os levavam tentando disfarçar o colapso iminente de uma forma de governar obsoleta. Temiam uma polícia secreta quando exprimiam as suas hesitações e depois abraçavam as deserções como única alternativa para escaparem ao inferno que os recrutou.
Partiam pouco convictos, a maioria, e depois era a sorte que decidia se voltavam pelo próprio pé.
Lembro-me de quanto o medo superava a fé nos olhares que desmentiam o discurso e se apoderava de todos por igual.
E também não esquecerei o olhar de uma namorada cujo sorriso escondia a alma de viúva antecipada e exibia a determinação para resistir à tentação de desistir daquele amor embarcado que só quando o barco desapareceu no horizonte finalmente chorou.