A POSTA ESPONTÂNEA
É enorme a distância a percorrer entre o que queremos e o que podemos (ou conseguimos) ser.
Claro que algumas e alguns conseguem no mínimo sustentar com maior ou menor razoabilidade a convicção oposta, no fundo conseguimos quase tudo o que quisermos no interior da moleirinha e até podemos ser hábeis a convencer os outros dessas certezas de fidelidade ao protótipo original. Fazem muito bem, pois a paz de espírito é fundamental.
Contudo, tal como a própria liberdade que nos inebria pode não passar de uma bebedeira global em muitos dos aspectos que compõem esse conceito tão lato, o paralelo entre aquilo que nos acreditamos ou esforçamos por acreditar e o que os condicionalismos internos ou externos permitem não é tão óbvio assim.
A irreverência é uma das maiores ratoeiras para essa percepção, sendo erradamente conotada com espontaneidade e/ou marca evidente dessa audácia de querermos impor um dado perfil. Mas afinal pode essa (quase sempre) espalhafatosa característica manifestar-se apenas em domínios que a favoreçam, acabando por a pessoa amochar em áreas com piso mais escorregadio e que possam impor preços demasiado altos a pagar pela atitude menos adequada.
De igual forma, a sinceridade absoluta de que algumas e alguns se arvoram como parte integrante do seu carácter acaba por sucumbir à primeira barreira que o bom senso lhe erga. Não, ninguém é absolutamente sincero ao ponto de dizer na cara à vizinha que é impossível olhar-lhe os lábios carnudos sem o sexo oral surgir no imaginário como fogo de artifício instantâneo. Ou de assumir perante o colega de trabalho que na noite sonhada se passaram umas horas de sexo tórrido a dois.
O direito à privacidade basta para justificar a sinceridade amordaçada.
De resto, os dados adquiridos acabam sempre por se revelarem um foco potencial de enormes desilusões para os próprios e sobretudo para aqueles que compram o pacote de boas intenções como se de um artigo da Constituição se tratasse. É fácil tombarmos do pedestal das ambições, das expectativas criadas com base nas convicções por testar na prática do emaranhado novelo que acaba por ser a nossa vida.
A tolerância afigura-se indispensável nas relações entre as pessoas e até nas que mantemos com a imagem no espelho, tolerância para com a inevitabilidade da incoerência.
É esse o segredo que distingue os mais felizardos, capazes de relativizarem (quase) tudo à medida da flexibilidade mais ou menos acentuada nos critérios.
Isto não implica da minha parte algum beneplácito para com o abastardamento das regras do jogo ou a absoluta ausência de definições de personalidade, pois temos que saber com o que contamos na essência (a nossa e a dos outros) com o mesmo rigor com que definimos os limites a tolerar ou a transpor.
Implica apenas a consciência de que não há heróis.
E de que a tal distância que refiro acima só encurta quando somos capazes, por exemplo, de nos rirmos de nós próprios e de reconhecermos com frontalidade os desvios que nos possam deslustrar a mais bem estruturada pala.