Há temas que parecem talhados para nos obrigarem a fazer figura de maluquinhos. Sei lá, acreditarmos na vida extraterrestre ou no poder da bruxaria ou no facto de uma virgem poder dar à luz sem qualquer intervenção que não a divina.
São coisas em que acreditamos acima de tudo por uma questão de medo ou pelo poder de sugestão de qualquer tipo de fé.
A fé, de resto, actua quase como um placebo para qualquer tipo de ferida na alma e resulta muito bem para alguns. Outros, mais cépticos, aguardam pelo dia de testemunharem a aparição de uma fulana muito feiosa montada numa vassoura para abandonarem a descrença. E se a fulana tiver antenas e um capacete em vez do chapéu de bico ainda melhor, porque mais abrangente, se torna a reconversão.
Isto a propósito da minha panca acerca de uma das criaturas mais inexplicáveis que a natureza (ou o Criador) produziu: a melga.
Dentro dos vários e invariavelmente repelentes insectos voadores, a melga ocupa um lugar de destaque no pódio (bem acima da mosca) dos animais inventados de propósito para adornarem a vida dos humanos com um pequeno toque infernal.
Recuso-me a apurar qual a utilidade de tal bicho, se alguma existir, no contexto da complicada teia de ligações entre as espécies. A melga é a única responsável pela minha progressiva afeição às aranhas e se já se extinguiram tantas formas de vida no planeta e a coisa ainda funciona custa-me a acreditar que o fim do zumbido mais irritante do mundo possa implicar algum dano irreversível no ecossistema global.
Sacortox, Raid ou Baygon
Mato-as sem apelo nem agravo. Mato todas as que encontro e, na pele de uma daquelas pessoas que numa sala cheia de gente são sempre escolhidas como o alvo preferido para debicar, não me faltam motivos para justificar esta aversão.
Desde muito pequeno aprendi a lição que estes bichos sem nexo insistem em renovar, atacando-me sem cessar nos sítios mais variados e nas épocas do ano mais estapafúrdias.
E é aqui que regresso ao parágrafo de introdução, vão já de seguida perceber porquê.
Esta minha relação de ódio com as melgas levou-me bem cedo a estudar-lhes o comportamento e a traçar-lhes um perfil que me permitisse ser mais eficaz na sua detecção e consequente extermínio.
Descobri que praticamente só surgiam no Verão, sobretudo do final da tarde em diante. Igualmente lhes topei a indolência do voo, sendo quase certo que depois de topadas não conseguiam escapar à palmada ou chinelada fatal.
Mas se há coisa que me ficou gravada na memória foi a atracção das melgas pela luz, sendo que passei muitos serões às escuras e iluminado apenas pelo ecrã da televisão precisamente para evitar “chamá-las”.
Pois bem, há vários anos consecutivos que mato melgas em Dezembro ou Janeiro (mesmo com temperaturas abaixo do normal para essa época do ano). Não duvidem ou começo a publicar fotos de grandes planos dos cadáveres esborrachados para o provar.
Mas há mais.
As melgas de hoje não ligam pevas à luz, o que se comprova pelo facto de ao contrário do que observei no passado não ser de todo frequente encontrá-las a rondar candeeiros nem tão pouco nos tectos, mas sim rente ao chão onde mais dificilmente conseguimos topá-las. É nos membros inferiores que registo a esmagadora maioria das marcas vitoriosas destas parasitas malvadas.
E da indolência e linearidade do voo das antecessoras pouco ou nada restou. Parecem moscas na mudança de rumo e sobretudo na inesperada rapidez.
Mas o pior guardei-o para o fim e é aqui que me junto aos maluquinhos que acima referi. Boa gente: eu acredito que as melgas modernas são o produto de uma evolução exageradamente acelerada por qualquer um dos muitos factores alterados na equação, pela intervenção humana no seu ambiente, e isso traduz-se no facto de não raras vezes eu ter assistido a reacções comportamentais de melgas tão estranhas como a de literalmente se esconderem do seu perseguidor.
Garanto-vos que não estou a brincar nem descuidei a medicação. São anos de perseguição mútua e implacável que me conferem legitimidade para defender todos os pressupostos que aqui levantei.
Pronto, já apaguei o charro.