Apenas uma página, sem princípio nem fim. Uma folha solta de um livro que se escreveu no Outono, um retalho castanho que o tempo pintou.
Palavras perdidas por alguém, fugidas de uma capa mãe que por instantes se distraiu e deixou uma página sua desaparecer, arrastada pelo vento até ao esquecimento na imensa lixeira dos bens perdidos por quem os queria e ignorados no valor por quem sem querer os encontrou.
Apenas uma página esquecida num canto da vida que não escolheria por si, pois sozinha nada dizia a quem por acaso a lia antes de a soltar ao vento para passar de mão em mão o pedaço da mensagem no todo que a parte não conseguia transmitir, história incompleta, lida na diagonal por transeuntes aleatórios, quase analfabetos alguns. Encarquilhada, pelo tempo cicatrizada nas suas inúmeras feridas, no orgulho, por se saber inútil no cumprimento do seu papel. Como se as palavras oferecessem uma alma a cada página para a animar ao longo do caminho solitário que lhes destina o incidente lamentável de verem separadas do sentido que só um livro lhes dá.
Uma página e nada mais, desencontrada pelo destino da sua presumível função. Sem contar com a colaboração das restantes, capazes de a explicarem na sequência numérica em que as arrumou um autor qualquer incapaz de adivinhar o desenlace da história daquele pedaço da sua que fugiu para o meio da rua onde originalmente a bebeu.
Antes, pouco antes, de a verter com uma caneta para a memória do papel.
Amputada agora pela lacuna imensa que uma simples página, irrepetível, produz.
O barulho de folhas, as outras, num estranho crepitar que o vento provoca, arrastadas mais a página sob a fina luz crepuscular que convida à leitura das palavras sem nexo, penduradas no meio de uma página sem princípio nem fim, nas mãos de um homem que de passagem a apanhou.
Apenas uma página, personagem de uma história sua que o tempo passado entretanto moldou.