22
Abr08
SEM MEDO DE FUGIR
shark
Correu sem parar, como lhe recomendaram, logo que cruzou a fronteira.
Uma pequena trouxa ao ombro e na alma uma dor alimentada pelo dilema, a bagagem possível para um foragido, um exilado, um desertor.
E afinal fugia por amor à liberdade de que o privavam, a de escolher como e quais os valores que gostava de defender no seu país. No seu país e nunca na terra de outros onde sobreviviam ou morriam aqueles que não fugiam por vergonha ou porque abraçavam um estranho sentido de dever.
Ele não tinha medo de morrer, mas recusava-se a entregar a vida por tal pretexto ou a deixá-la comprometida, estropiado no meio do capim.
A sua aparente cobardia explicava-a assim, a si próprio, enquanto corria sem parar como lhe recomendaram em voz baixa dois amigos sem nome que o haviam instruído nos caminhos secretos que outros haviam calcorreado antes de si.
E outros se seguiriam, certamente, pois as mães e as mulheres começavam a despertar do medo de um papão e a optar pelo coração que não resistia à hipótese de uma despedida dramática no cais, talvez para nunca mais abraçarem os amores da sua vida depois de entregues à multidão, entregues ao líder de um pelotão cujas fileiras se viam assim remendadas.
Por isso enchiam-se as madrugadas de mancebos que corriam para França, os cobardes que perseguiam a esperança de uma vida melhor ou apenas de uma vida qualquer que na guerra já muitas tinham sido negadas aos bravos que aceitavam embarcar no Niassa, essa imensa barcaça onde os medos navegavam travestidos em uniformes de falsos heróis (que a nobreza da causa é sempre indissociável do feito que a coragem consiga alimentar).
Por isso corria sem parar, na direcção de uma pequena aldeia onde havia uma maneira de dar a volta à situação, onde havia um Manolo que estendia a mão aos que fugiam de algo que também na sua terra nascera, aos tiros, do vermelho consanguíneo que tingira o solo com uma cor idêntica daquele que se vertia por África em nome de Portugal.
Nos rostos fardados que as mensagens de Natal, adeus e até ao meu regresso e se calhar até me despeço nesta última saudação, via jovens como ele, soldados que poderiam morrer em vão, pela teimosia obstinada de quem não combatia mas mandava sem perceber a dimensão da asneira.