Com o armistício assinado na guerra civil da Parvónia e a Media Markt a meter o rabinho entre as pernas com o polémico escuteiro do seu anúncio a desaparecer pela magia de uma "boa acção" por cagufa, foi agora lançada mais uma campanha publicitária (do Banco Espírito Santo) feita à custa da ridicularização de um grupo específico de profissionais.Desta feita os visados são os vendedores de automóveis, caricaturados na sua versão menos agradável.
O problema destas paródias publicitárias reside numa lógica muito simples e difícil de desmentir.
Para se justificarem na função os publicitários provam-nos a sua influência na tomada de decisão do seu público-alvo de circunstância. Ou seja, conhecedores dos seus instrumentos mais eficazes (os
media, nomeadamente a televisão), arvoram-se capazes de manipularem os impulsos de compra de fatias aleatórias da audiência massificada.
E tudo indica que se confirma o pressuposto.
Ora, a mesma lógica que lhes sustenta a eficiência é a que confere aos media um impacto determinante na formação de decisões. E de opiniões também.
E é aqui que entra a face foleira do argumento utilizado nestas ridicularizações pontuais desta ou daquela realidade, sem que isso se revele particularmente eficaz ou possa sobrepor-se às hipotéticas alternativas.
Se aceitamos o impacto da publicidade nas pessoas não há como fugir à evidência da sua eficácia pela negativa.
E nesse caso, a imagem de um grupo ou classe profissional sai efectivamente lesada no boneco que os anúncios pintam.
A delicada questão das fronteirasAnda um enorme sururu no Aspirina em torno da sensível questão das caricaturas a Maomé e um dos aspectos mais polémicos é precisamente o da definição do que é ou não insultuoso e, por tabela, de quais os limites (se existirem) da aplicação prática do conceito de liberdade de expressão que é tão cara a quem se revê no modelo de sociedade que é a nossa.O paralelo que encontro nestes dois aparentes conflitos entre a liberdade criativa e a sensibilidade (ou vulnerabilidade) de determinado grupo de pessoas reside precisamente nos pontos de convergência das duas questões levantadas, passe a relevância de cada uma.
A liberdade de expressão não deve constituir-se plataforma para abusos. Contudo, a definição de abuso pode ser moldada ao sabor das conveniências de quem pretenda encontrar pretextos para a cercear. Quero com isto dizer que se o livre arbítrio de quem insulta ou inferioriza pode resvalar para os terrenos pantanosos do fartar vilanagem, mais facilmente a manipulação oportunista de falsas virgens ofendidas pode converter-se numa ameaça à liberdade em si própria.
Na questão da publicidade de mau gosto, o episódio Media Markt conheceu um epílogo que se transportado para o exemplo das caricaturas a Maomé faria com que os dinamarqueses pedissem desculpas públicas e banissem os trabalhos da polémica. E esse precedente seria tão encorajador para a chantagem de bombistas como o será para qualquer grupo influente que acene com as formas de pressão ao seu alcance no Estado de Direito para se proteger de uma eventual imagem lesiva.
O paralelo reside na cedência que basta ver-se multiplicada para se arreigar como um costume, como uma prática recomendável.
E isso constitui um perigo real para o conjunto de valores que nos distinguem, enquanto civilização, das que se revejam num modelo onde o bom senso é substituído pelo proibicionismo e pela força bruta fundamentalista.
Definição de prioridadesE foi essa a verdade que a argumentação inflexível do
Valupi nos
dois posts publicados acerca da bronca das caricaturas enfatizou. Entre o enquadramento legislativo que evite os excessos ou permita a sua reclamação (jurídica) por qualquer pessoa ou grupo que se sintam lesados e o recuo inerente a uma retracção em função de qualquer ameaça desproporcionada o mal menor é sempre o primeiro destes dois cenários.
Os publicitários que optam por denegrir a imagem de uma classe profissional, legitimados pelo direito que possuem de o fazer, são uns imbecis aos meus olhos e só revelam falta de capacidade para enveredarem por um caminho talvez menos fácil mas seguramente mais digno na abordagem.
Os empresários que cedem à ameaça latente de terceiros só para evitarem transtornos são uns cobardolas revisionistas.
Mas isso é a minha opinião, que sou livre de emitir porque vivo no lado do mundo onde esse direito não é algo de negociável. Porque sou igualmente responsável pelas consequências dos meus actos e afirmações, caso o seu teor ultrapasse o que a Lei defina como legítimo dentro do espaço de manobra que a liberdade me confere.
Eu não subscrevi o visível recuo da Media Markt, como não levei a sério as virgens ofendidas escutistas. Sei que a indústria automóvel possui os meios necessários para contrapor à arrogância criativa dos anúncios bancários uma resposta adequada e proporcional.
E ainda sei que anos atrás um banco revolucionário impôs a sua diferença através da ridicularização dos processos arcaicos da concorrência (as velhas chapinhas numeradas de metal, lembram-se?), pelo que nem se pode dizer que são incapazes de apontarem as baterias aos seus da mesma forma que os caricaturistas escandinavos podem embicar para questões tão delicadas como a pedofilia que a Igreja Católica tem albergado no seu seio (certamente com uma expressão tão minoritária como a dos extremistas que ameaçam de morte quem os melindre, no contexto da multidão que arrastam na imagem intolerante mas que certamente não representam).
Com conta, peso e medidaJá fui vendedor de automóveis e numa primeira reacção, instintiva, senti-me incomodado com a ridicularização implícita na campanha que referi. Mas se tivesse que ameaçar uma instituição bancária (jamais as pessoas que as integram também valorizo essa diferença) com uma acção à bruta jamais seria sob o pretexto de desatinar com uma chalaça mas eventualmente por me fecharem a torneira, executarem uma hipoteca e fazerem-me sentir a mais na sociedade e no mundo a que quero pertencer.
Precisamente o que me querem fazer sentir os fundamentalistas que ameaçam matar quem os hostilize com reacções à sua visão afunilada das coisas que se traduz numa conduta criminosa mesmo à luz dos preceitos que alegadamente defendem.
Talvez porque seja assim que eles próprios se sentem.
Mas a culpa não é minha, nem do modelo de sociedade em que me revejo.
E isso não me cega às desigualdades e injustiças que dele resultem, como estas não podem servir de pretexto para abdicar por medo de coisas tão preciosas como o sentido de humor para poder rir-me destas palermices todas.
Ou de debochar com a sua essência tão séria e no entanto, pelas suas inúmeras incongruências e equívocos, quase a roçar o descaradamente infantil.