01
Ago07
A POSTA QUE ATÉ PARECE QUE ÉS BRUXO
shark
A bola de cristal, muito calculista e racional, fornecia-lhe imagens nítidas dos seus futuros possíveis. Charadas, na maioria, pois a bola sabia respeitar as regras do jogo do folclore da (e)vidência simulada.Curtas metragens de longas viagens pelo que a sua escassa influência poderia determinar naquilo que aconteceria passavam no interior da bola de cristal, numa espécie de antestreia privada com sabor a peep-show e sem qualquer explicação acerca dos detalhes específicos do seu papel em cada uma das cenas da sequência.
A bola de cristal, vaga nas respostas mas de alta definição, parecia brincar com o seu único espectador. Oferecia-lhe imagens de amor impossível ou de separação definitiva, de sucesso na conquista ou de vergonha pela aparente deserção.
Sem qualquer explicação.
E ele observava em silêncio os cenários variáveis em função de uma incógnita que sempre lhe escapava de cada vez que uma teoria sua explicava um desenlace qualquer.
O rosto de uma mulher que influenciara algumas decisões e o de outras que algures desistiram de o tentar. Pretextos que a bola de cristal lhe oferecia para ver se ele escolhia um dos rumos em exibição naquele canal de comunicação celestial clandestina.
O bem e o mal de mãos dadas na elaboração de cada trama intestina, os flashes de momentos na cama como pensamentos marcados por uma nostalgia irreal face às imagens de episódios ainda por acontecer.
O futuro na sua mão, redondo, e a bola a prever um triângulo no qual não acreditava. E a repetição incessante de uma emoção contrastante com a ausência de brilho no olhar da mesma pessoa no fotograma de uma alternativa herdada de um passo em sentido contrário (o tempo como adversário) que parecia deitar tudo a perder.
Não sabia o que perdia, porém. Assistia a algo que na verdade não tinha e por isso concluía-se sem nada de concreto a temer.
A bola a oferecer de bandeja o espectáculo da vida que graceja quando desencadeia eventos sob a lógica implícita na queda programada de uma quantidade infinita de peças de um bizarro dominó.
E ele sentia-se só no momento de tomar a decisão de avançar num sentido, a tentação de alterar o definido (também) em função das escolhas dos outros implicados nas entrelinhas do guião.
Acompanhavam-no, no entanto, algumas certezas que o passado firmou. E a essas não lhes permitiria fraquezas que pudessem resultar da simples observação do resultado da especulação de uma máquina de calcular imaginária, a hesitação embrionária em resultado de um excesso de zelo.
Não sabia o que fazer com aquela informação valiosa disponibilizada por uma vidente engenhosa que no fundo lhe manipulava as opções com as visões subjectivas gravadas no processador da sua bola de cristal, condicionadas pelo seu próprio presente a acontecer prioritário.
A baliza que imaginou no horizonte do imaginário quando se confrontou com a necessidade de impor um objectivo qualquer para a bola que aquela mulher lhe passara para as mãos, enigmática, foi a solução que encontrou (a mais prática) para resolver as inúmeras questões suscitadas pelo acesso às imagens proibidas que de pouco serviam sem uma explicação cabal.
Olhou de novo para a bola de cristal, sorriso trocista, farto de se sentir um tolo.
E quando a rematou para longe, a perder de vista, o visionário de circunstância festejou o golo, muito antes de o esférico passar sob o vulto da Guardiã e beijar as malhas do futuro que o avançado escolheu e a bola de cristal que para sempre se perdeu jamais voltaria a influenciar.
A última imagem que passou foi a de um homem que caminhou sereno sobre as águas agitadas de um passado que esqueceu, rumo a um futuro alternativo que podia ter sido outro, quiçá melhor (não o sabia).
Mas era aquele afinal o seu (que o fazia). E a bola de cristal não o escondeu, pouco antes de desaparecer sob as ondas a sua última centelha de luz enquanto a vidente premia, indolente, os botões no comando à distância com que escolhia, imperturbável e fria, outro canal do aparelho alternativo de (tele)visão virtual ao seu dispor.