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Dez06
O CONTO DE REIS - Uma Novela no Espírito do Quadro (Cap III)
shark

JC não estranhou quando Nicolau pousou sobre a mesa as cuba livres, que declinou com cortesia. Já sabes que eu só bebo tinto, é a tradição desde a última jantarada
- Ah pois, com os apóstrofos! Mas não faz mal, tenho ali um alentejano de 97 que é de estalo. E na adega há mais (o de 2004 é ganda malha)!
Os olhos de Nicolau brilhavam com o reflexo das luzinhas da árvore enquanto pensava nas pomadas que reunira ao longo de muitos anos de distribuição de encomendas natalícias. As gorjetas não pagavam impostos e isso em muito contribuía para a paz financeira que Natália tudo faria para preservar.
- Vê lá mas é se te emborrachas outra vez este ano, Nicolau Lá por agora não conduzires, isso não faz com que possas esticar-te na bebida.
Ela recordava-se do último pifo, dois Natais antes, quando finalmente lhe haviam apreendido a carta de trenó em definitivo. Para não o embaraçarem, e por respeito a tantos anos de dedicação, haviam fingido que o médico da Direcção Geral de Aviação não lhe renovara a carta.
Mas ainda assim, Natália receava a mistura com a medicação (pela surra, costumava desfazer comprimidos azuis só um nadinha no meio da sopa).
- Pois é, cá estamos outra vez - JC estremeceu quando a matrona voltou a abrir a matraca. Vinha lá sarilho pela certa
E assim se confirmou.
- Então, JC, o Zé já se conformou com aquela questão hummm da paternidade duvidosa?
Era um assunto muito sensível para o bebé nas palhinhas sentado e ela bem o sabia.
Ficou com um chorrilho de palavrões, pecado sem perdão, mesmo à porta da boquinha infantil.
Os sininhos da porta salvaram a situação por um triz.
Nicolau, já meio tocado, abriu a porta e abraçou com intensidade o recém-chegado como se entre ambos existisse alguma espécie de proximidade.
- Porra, pá, que me parte as (cos)telas!
Era o Espírito do Quadro, um pintor frustrado que só servia para justificar o subtítulo de uma posta marada e para ver se surgia um final qualquer prá coisa antes de o Natal acabar.
Divorciado da esposa, uma amiga íntima de Nicolau na sua fase jovem e irreverente, vivia da venda de bustos para enfeitar o Natal dos hipócritas e de, como o nome indica, quadros nos quais retratava espíritos do Natal Passado e outros fósseis que o consumismo desenfreado enterrara de vez.
Natália até se benzeu, para gáudio do menino que decantava o Herdade Grande com a mestria de um escanção.
Nunca esquecera os rumores da ligação entre o seu Nicolau e a flauzina da Quadra (que agora deixara cair o apelido do ex).
Dali só podia vir bronca.
Contudo, o artista surpreenderia todos com a sua intervenção.
- Desculpem incomodar, espero não ter interrompido nada
JC contorceu a boquinha num esgar de anuência, perante o olhar severo de Natália. Nicolau, bochechas rosadas, sorria com um ar imbecil e olhava para o Espírito do Quadro como se de um filho se tratasse.
- Venho cá para vos contagiar com a paz e a harmonia que a Quadra (não tou a falar da minha ex, claro) deve a todos inspirar!
O trio nem tugiu nem mugiu, enquanto aguardava a sequência do surpreendente intróito.