15
Dez06
ARRUMA DOR
shark

Reparei no teu olhar perdido, o tempo esquecido na manhã de outro dia igual ao anterior.E receio por instinto que um dia também me falte o amor, aquele de que abdicaste quando finalmente aceitaste a sina que te leu a cigana na palma das mãos que há muito não tocam outro rosto que não o teu.
A tua expressão zangada, represália pela vida alheada de uma presença que não lograste feliz. A indiferença de quem passa diante do teu nariz e te faz sentir transparente, inferior, destroço de gente que não interessa reparar.
A multidão a passar, hora de ponta, e o teu tempo esquecido no turbilhão de uma bebedeira. Anestesias uma vida inteira, esgotada a resistência à dor que o passado te deixou quando o cenário mudou e reparaste finalmente que já nada existia em teu redor daquilo que tinhas por sagrado mas foste desleixado e deixaste escapar.
Arrependimento de nada serviu. Essa vida partiu e tu juntas os cacos da alma com andrajos da consciência atolada de mágoa e com cola fingida da solidão que insistes cuspir mas não te larga da mão.
A tua companhia derradeira, no final de uma vida quase inteira a escorraçar quem te quis bem. Os filhos primeiro e logo depois a mãe, saturados da tua atitude quando estavas na plenitude da capacidade que decidiste desperdiçar.
Agora sentes vontade de amar, mas vê-se que entendes ser tarde demais.
Sentado num banco qualquer, à espera de coisa nenhuma. A esmola que vier de outro carro que alguém estaciona. A decadência que te aprisionou e agora te corrompe aos poucos a vontade e te exibe a verdade que tentas ocultar.
Nas costas de um espelho onde refugias esse olhar.
Porque recusas a imagem do homem que pelo caminho se perdeu.
E mergulhas numa viagem sem destino que o tempo há muito esqueceu.