Os sons das outras vidas transpunham as paredes que o isolavam da vizinhança e ele sentava-se na sala todos os dias, em silêncio, para os escutar.Vivia assim, as vidas dos outros, ria e chorava, não dizia mas pensava as soluções em falta para os guiões alheios que lhe oferecia uma existência de espectador.
Durante trinta anos preencheu assim os serões e o início de cada dia, sentado no cadeirão à escuta. A companhia das vozes e dos ruídos que lhe traziam a escassa compensação de uma realidade que partilhava clandestino como um espião a fingir.
Todos no edifício o julgavam maluco e ninguém se atrevia, ninguém arriscava a troca de uma palavra com aquele estranho que os conhecia a todos melhor do que qualquer outra pessoa. Alguns apenas em uma ou duas ocasiões conseguiram apanhá-lo de fugida, na sua corrida para a salvação nos degraus.
O mudo do quinto, como o chamavam, sofria de claustrofobia e nunca partilhava um ascensor. Assim o explicavam, calado e arisco, sempre que o falavam pelas costas do roupão, com o lixo na mão que despejava de madrugada no contentor atafulhado dos restos das vidas que preenchiam a sua.
Estranhavam os minutos que demorava em contemplação dos detritos que lhe confirmavam teorias e completavam na memória as imagens esboçadas pela imaginação.
Ninguém adivinhava o prazer que lhe dava a visão do papel de embrulho rasgado pelas pequenas mãos do vizinho do lado, a festa de aniversário que sorvia enquanto sorria de orelha encostada ao fundo do copo na parede do quarto vazio que lhe servia de arrecadação.
Gritos de alegria, música no ar, pura magia nas sobras de vida que escorriam sonoras pelos poros do betão até aos ouvidos atentos do vizinho solitário.
Os dias escoaram-se assim até um dia em que alguém deu pela falta dos passos discretos do maluco do quinto na penumbra dos patamares. E o cheiro que exalava da porta que o isolava dos outros fazia prever o pior.
A polícia e os bombeiros desvendaram o mistério. Corpo inerte putrefacto, o cidadão anónimo do quinto jazia sem vida numa cadeira da sala vazia.
Descobriram-lhe no colo o grosso volume daquilo que confirmaram mais tarde tratar-se de um diário. As vidas de várias pessoas, famílias, descritas com emoção pelo observador ausente, um afastado parente que registava com palavras belas a expressão colorida do seu sentir envergonhado que a vizinhança ignorou, autista.
Ninguém o acompanhou na derradeira viagem, até à última paragem no condomínio para sempre fechado, onde o vizinho calado se apeou para escutar na eternidade as vidas passadas dos espíritos que o observavam desconfiados na sua muda corrida para a salvação nas nuvens mais escuras do céu.
O seu diário, legado, seria publicado pouco tempo depois e alguns críticos aventaram uma profecia, outros uma maldição, nas duas linhas iniciais.
Alma penada perdida na estrada que o destino esqueceu. O mapa traçado no papel assombrado que um fantasma escreveu.