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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

05
Ago06

A POSTA SARAIVADA

shark
Como poderão constatar na caixa de comentários da posta anterior, tenho um amigo fotógrafo (daqueles a sério). O que nos aproxima, como o péssimo feitio que partilhamos, é o mesmo que nos afasta. E os nossos caminhos cruzaram-se por acaso, devido apenas à lamentável coincidência de termos trabalhado em tempos na mesma revista e, ainda pior, em equipa por diversas ocasiões.

Isto para vos explicar o teor da nossa ligação cujos contornos transpiram do clima que o bacano cria de cada vez que intervém a meu respeito. A porra é que o gajo é bom na cena (já falei do assunto neste pasquim mais de uma vez) e eu não consigo deixar de lhe dar mais atenção do que merece e muito mais do que eu tenho para lhe dispensar.

Feito o intróito, passo a explicar a lengalenga que o fulano (Pedro Saraiva) debitou no seu enigmático comentário.
Por ironia do destino, o pouco que fizemos juntos saiu bem. Nem ele nem eu entendemos como nem porquê, mas as minhas palavras vestiram bem alguns dos seus excelentes momentos na publicação onde ambos desempenhámos diferentes funções.
Daí, agora que ele já é um artista que expõe e tudo e eu continuo o mesmo moinante com algum jeito para palavrar surgiu-lhe a ideia peregrina de me convidar para debitar umas prosas acerca de cada uma das fotos em exposição num local (magnífico) que vos referirei mais adiante.

Com todas as limitações e disfunções que a sua intervenção abaixo denuncia, o Saraiva é um fotógrafo que me prende a atenção. Gosto do que ele faz e sinto-me lisonjeado pela sua insistência numa parceria que, espero, pode proporcionar momentos agradáveis para quem lhe possa observar os resultados.

Logo que (à trigésima tentativa) eu consiga debitar textos que satisfaçam os elevados padrões de Sua Senhoria ao ponto de poderem acompanhar o seu trabalho exposto no número 17 da Rua das Pedras Negras (à Sé, em Lisboa), o Work&Shop que eles (ele e a sua sócia) criaram para acolher quem gosta de artesanato, fotografia e outras coisas dessas que a malta não dispensa, darei conta desse facto e depois vocês vêem se arranjam pachorra para ir dar uma vista de olhos na cena.

Até pode ser que sintam que valeu a pena.
04
Ago06

A LOUCURA DOS QUARENTA

shark

Depois dos quarenta sofri, como julgo que aconteça com os outros machos da espécie, algumas transformações subtis daquelas que se instalam na nossa forma de ser e de estar como softwares marados, insidiosos e piratas, que aterram no disco sem darmos por ela.
Coisas pequenas, quase imperceptíveis no dia-a-dia, mas que influenciam bastante o comportamento de um gajo quando se manifestam de forma automática, involuntária, e assim nos apanham de surpresa.

Com a idade passei a sentir mais na pele as mudanças do clima. Variações bruscas da temperatura que antes eram inofensivas, começaram a fazer-se notar no meu esqueleto e acima de tudo na minha predisposição para determinadas actividades humanas. Como jogar à bola, um pouco mais complicado quando emperram as juntas.
Contudo, o “clima” assumiu igual preponderância. Passei a dar mais atenção às questões de pormenor, mais permeável a essas diferenças térmicas que um diálogo mais quente ou um ambiente propício podem proporcionar.
a noite que me comanda.jpgFoto: Shark
O envelhecimento (ou a maturidade, para quem preferir) desperta-nos para a vida que acontece nos detalhes. Das pessoas também. Um ombro desnudo, um olhar apelativo, uma indumentária especial. E a atitude, o empenho, a frase certa, o gesto adequado.
As pequenas coisas que de repente passam a fazer a diferença na subida ou na descida do mercúrio no nosso termómetro interior. Uma delícia, confesso, um gajo dar consigo a saborear estas cenas que antes passavam despercebidas no meio da gula desenfreada.

Tudo adquire uma nova dimensão, mais sensual. Como se em vez de emborcar a água aos golos pelo gargalo de uma garrafa, sedento, desatento ao diferente sabor que as águas assumem, me desse para absorver o líquido precioso gota a gota. Até ao fim, na mesma, mas empenhado na degustação como se esta constituísse uma forma de sede acessória, alternativa, indispensável, complementar.
A pele mais sensível, mais atenta às sensações. E a cabeça no lugar, confiante, livre dos medos e das vergonhas, dos anseios e das hesitações.

O clima que se cria em torno de uma dada situação. O charme, o calor, a calma necessária para aguardar o momento ideal que se constrói passo a passo, como um lego, sem pressa que torne despercebida uma fresta por onde o frio possa penetrar. A temperatura amena, com tendência a subir. Meteorologia rigorosa, como a que se aplica a um vinho de excelência para o apreciar melhor. A medição com os ouvidos, pelas palavras, com os olhos, pelos gestos e pelas expressões, e em certas circunstâncias, pela reacção epidérmica ao toque suave de uma mão.

outro a nascer.jpgFoto: Shark
A sensacional revelação de que a passagem do tempo não faz esmorecer o entusiasmo (tá bem, a tesão também…), antes o sublima e doseia nas devidas proporções. Quando é preciso (o entusiasmo), está lá. Atento aos tais pormenores, os estímulos insuspeitos, imprevistos, que nos fazem disparar a adrenalina. A graciosidade de um enrolar do cabelo nas pontas dos dedos, o botão desapertado na blusa, a lingerie criada por quem entende como é bonito um corpo de mulher e como um pedaço de tecido se transforma num motor de explosão. A ignição no nosso olhar encantado por miríades de impulsos agradáveis, o milagre da multiplicação da vontade mais um toque de serenidade que nos permite merecer pelo empenho tanta fartura de pequenas emoções.
Os preliminares de si próprios, anunciados aos poucos na subida gradual da atracção.

Aos quarenta, queremos que valha sempre a pena. Que seja sempre muito bom. Exigimos mais e melhor, de nós e das situações que queremos explorar, na cama sobretudo.
Perdemos, falo por mim, a paciência para catraias. As expectativas elevadas têm maior correspondência no comportamento felino de uma mulher madura, exigente, ela própria concentrada em potenciar os momentos especiais.
Trabalho de equipa, parceria, acontece a magia prolongada, a emoção despoletada desde o primeiro instante (quando se recebe o impacto visual de alguém que se preparou por dentro e por fora para nos agradar).

E o mais giro é que também funciona na perfeição quando o termómetro rebenta escaldado e mandamos as medições às urtigas, roupa espalhada pelo chão.
Não morre em nós a capacidade de resposta imediata, se tem que ser agora mesmo a malta pode entreter-se a “preliminar” depois, nem que seja numa agradável e bem disposta, mais atrevida, sessão de palheta. Dá para tudo, esta disposição de quarentão que me tem surpreendido pela positiva e não dá mostras de querer abrandar.

ocasos especiais.jpgFoto: Shark

Sinto-me melhor, em muitos aspectos, do que há vinte anos atrás (sim, no entusiasmo também). Mais consciente de mim e dos outros e das outras que são a alma do que chamo ser feliz. E sou, sempre que (re)encontro a paz comigo próprio e me posso dar ao luxo de ser como sempre me gostei. Sem merdas e sem vontade de conflituar ou de me embaraçar com atitudes menos próprias de mim.
E disso dou conta para que os chavalos que me leiam possam em simultâneo perspectivar o futuro com razões para não o temerem e percebam que vale a pena tentar antecipar alguns dos prazeres que só a idade nos traz.

A pele da vida que se agarra com a mesma sofreguidão, ou maior, porque o tempo anuncia-se mais curto na cabeça grisalha, mas acariciada por prazer com os dedos, com os lábios, com tudo o que temos para oferecer mais uma espécie de gratidão muda pelo que de bom a vida nos dá em troca. No sorriso de um filho que cresceu ou de uma mulher transpirada pelo ardor do amor que recebeu.

O amor que damos, refinado, quando vibramos por dentro mas conseguimos transmitir e absorver o desejo, a paixão e o prazer com o requinte dos entendedores que só a experiência de vida consegue moldar.
Aos vinte era fixe, mas aos quarenta fica tudo melhor. Antes, durante e depois.

Se pudesse recuar no tempo ia lá buscar-me para curtirmos os dois.

vinte e muitos.JPG
03
Ago06

FATO E GRAVATA (repost)

shark
autocarro.jpgFoto: Shark
Deitou-se arrasado, depois de um dia interminável. Nem comeu.
Sentia-se tão cansado que não tinha sono, apenas uma enorme vontade de dormir. Deitou-se de costas sobre a cama e fixou o tecto, tentando encontrar na monotonia daquele padrão ondulado a sonolência que tanto sentia precisar. Passados alguns minutos, constatou que a receita não resultava. Suspirou.
Lembrou-se de um clássico. Projectou com a imaginação uma cerca e um apreciável lote de ovídeos que se disporia a contar, até à exaustão. De cada vez que imaginava uma daquelas bolas de lã com patas a pular como um cavalo educado na melhor escola de equitação, bufava. Mas nem uma vez bocejou.
Trocou os cordeiros pela mais diversa bicharada. Cangurus e coelhos, pulgas e gafanhotos. Nem um elefante faltou à chamada, mas esse não saltou. Antes destruiu a vedação imaginada e com ela a esperança de que o expediente resultasse num sono repousante e feliz.

Acabou por se levantar, foi à janela espreitar o resto do mundo que dormia e invejar em silêncio, vento frio a soprar-lhe entre as orelhas e a gola do pijama, o descanso imprescindível que até uma cidade enorme se permitia usufruir. Sacudiu-se num arrepio. Todavia, insistiu em enfrentar a brisa glaciar daquela madrugada de final de Outono.
Estava bonito, o céu. Carregado de nuvens iluminadas pelo reflexo laranja da iluminação urbana, parecia abraçar a superfície abaixo, como uma gigantesca almofada onde os anjos dormiam ferrados e sonhavam o dia a seguir.
Ele pensava o dia acordado, gelado, em discreta vigília do sossego nocturno da totalidade dos habitantes daquela rua. Nem um gato vadio quebrava a paz daquele momento tranquilo, todos ressonavam bem alto e faziam pirraça ao protagonista sonâmbulo de um pesadelo vulgar. Acendeu um cigarro. Assim mantinha entretida a boca que reprimia a vontade de berrar o desagrado, de acordar à força a vizinhança e torná-la solidária num período difícil da vida de qualquer cidadão. Sentir-se-ia menos só, se pudesse trocar umas impressões sinceras com o pianista do lado ou com a doméstica de cima, tanto fazia, acerca das broncas que lhe atormentavam a vida e lhe tiravam o sono. Os problemas que o despertavam para a falta que faziam os outros em hora de aflição. Esta era a sua.

O relógio na cabeceira, implacável, contava em taques os segundos que se escoavam rumo à hora de levantar outra vez, os tiques diários, apressado ritual de pequenas tarefas que todas somadas pareciam inventadas só para o atrasar. Ele corria, vida em contra-relógio, sempre com medo de faltar à chamada do autocarro, carreira vinte e um, que passava na rua detrás precisamente às oito horas. Nem mais um minuto, motorista cumpridor de um raio que o parta, o seguinte só passado um quarto de hora e o patrão não perdoava tanta desculpa igual. Como se fosse obrigação de alguém ter pressa de chegar à merda de emprego que sua alteza se encarregara de providenciar. Era a aventesma do patrão que o privava de dormir, com a miséria de ordenado que não compensava o serviço de qualidade superior que lhe prestava aquele magnífico funcionário que merecia uma promoção. Mas isso, o sacana não apressava. Filho da mãe!

Sentiu o sangue fluir pelo corpo, rompendo a custo as barreiras de mau colestrol que haviam de o conduzir ao enfarte de miocárdio tradicional do operário urbano, moderno, atascado em papelada num agitado escritório. Morriam novos, as estatísticas o diziam, os trabalhadores do terciário mais empenhados em singrarem na vida, em progredir. Sobretudo os que não dormiam, pensou. E sentiu ainda mais o frio da madrugada, apagou o cigarro e enfiou nos lençóis a carcaça dorida, já o sol rasgava a noite por detrás do horizonte de betão. Precisava mesmo de dormir.

Mal teve tempo de encostar o rosto no travesseiro, em sonhos, que o maldito despertador desatou numa berraria. A insónia era mentira e estivera sempre a dormir. Deitado de costas, fato e gravata, tal e qual adormecera, acordou mil vezes mais fatigado que no dia anterior.
Acabou por se atrasar a sair para a rua, tentando remediar sem sucesso os vincos na indumentária.

Do outro lado da cidade, nesse mesmo dia ao jantar, um menino contou aos pais, impressionado, como no caminho para a escola, pelo vidro da traseira do vinte e um, viu pela primeira vez na sua vida um homem crescido a chorar, ajoelhado num abraço a uma paragem de autocarro vazia.
02
Ago06

FIEL AO AMOR QUE TE DOU

shark
telhados sem vidro.JPGFoto: Shark
Quero que pares de verter lágrimas, por favor. Não chores nem te revoltes quando fazemos amor como o fazes sentida pela minha repetida ausência ou por algo que não te caia bem.
O teu soluçar, a tua revolta, acaba por rasgar uma fina película que me cobre o coração e o resguarda da consciência da desilusão que posso constituir.
E eu não quero admitir o meu papel de algoz, soa-me atroz este desgosto que manifestas nas minhas costas ou no momento em que te entregas, por baixo ou mesmo por cima de mim.
Quero que não entendas esta afirmação como uma inconcebível proibição mas apenas como uma súplica que te faço para me poupar a tudo o que resultar de negativo da minha presença na tua existência tão importante para mim.
Tu conheces-me assim, desregrado, facilmente desviado daquilo que não passam de previsões falíveis. Apelos irresistíveis que se apoderam da minha vontade, maluqueiras, e eu perco as estribeiras quando me temo cativo de um constrangimento qualquer.
Não faças planos, mulher, pois sou imprevisível e acho inconcebível uma vida definida por antecipação.

Sou um filho da ilusão, amante da utopia. Bastardo da liberdade reprimida que nunca aceitarei como herança. Não sou de confiança para quem me anseia tutelado por imperativos morais alheios à minha convicção de que a força de uma paixão é superior a todas as razões apregoadas pelo ícone conservador. Dizem-me que o amor só é puro e aceitável quando o tornamos enquadrável num determinado padrão.
Mas este meu coração renega todos os pressupostos e não alinha nos gostos instituídos como um uniforme que nos disciplina. Este homem não atina com as regras que o seu mundo tem.
O amor é rebeldia também. Parte da sua magia deriva da irreverência. Confundem consistência com uma espécie de estabilidade governativa sentimental.

O amor é revolução, agita. Porque acredita na liberdade sem restrições, instintivo, e não se aceita cativo de modelos que não o permitam activo, disponível. Não tolera que lhe digam ser possível existir um amor em demasia, vive na fantasia de uma perfeição condicionada pela educação castrada que transforma o ciúme num contrato vitalício em regime de propriedade horizontal.
O amor não pode ser visto como um mal, sempre que extravasa as suas alegadas competências. Contos de fadas, fidelidade canina, de uma forma genuína aos olhos de uma sociedade que o ordena mas nunca cuidou de o aprender.

E dói a valer essa humidade no olhar que me dedicas, quando sentes que abdicas de algo essencial em prol desse amor que gostaria de me impor um recolher obrigatório das emoções tresmalhadas.
O meu rebanho emocional é feito de alazões que a pele de ovelhas nunca consegue cobrir. Apenas disfarça o meu sentir como uma mezinha caseira para atenuar uma maleita. Mas eu não sinto doente a minha forma de amar alguém. Sou amante, sou amigo, sou um homem nascido para viver a felicidade espontânea que nasce nas árvores como musgo, imprevista, podendo fluir em simultâneo como a água na nascente de um rio.
Contudo, a minha forma de ser feliz implica a tua felicidade por inerência. Implica a obediência aos dogmas de uma doutrina que não se coaduna com aquilo que se produz onde não alcança o longo braço de lei alguma, incontrolável.
Por isso te peço que me ames tal e qual como sou, na certeza de que não vou desertar da minha forma de te amar nem a permito conspurcada por um sentimento marginal. É sempre legal a razão que um coração invocar e o meu pertence a quem o souber conquistar sem a violência de barreiras ou imposições.

Parece libertinagem mas é uma vantagem entender esta parte da minha essência que cria uma distância que se expõe artificial. É muito natural que existam pessoas como eu, diferentes para pior na óptica de quem me preferiria um pouco mais igual à maioria dos que afinal apenas se afirmam melhores porque libertam nos bastidores, às escondidas, os seus amores clandestinos que lhes traem as posturas apregoadas.
Mas eu sou um gajo desbocado, não me quero privado pela mentira da liberdade que reclamo na tua presença com a mesma sinceridade que escrevo aqui.

E tu, destinatária, és todas as mulheres que amei, que amo ou amarei no futuro. É muito mais seguro saberes com o que podes contar e poderes assim rejeitar a tempo o impulso desnorteado que em má hora te empurre para mim.
Sou uma péssima escolha se buscas uma solução tranquila e fiável.

O meu amor é indomável.

Mas algo no teu interior jogará a meu favor.
O teu coração consegue ver com clareza o que a lógica desmente com a certeza de uma tipificação absurda que nunca me definirá como pessoa incapaz de te amar como nunca alguém conseguiu.

As lágrimas que deitas ou a forma como me rejeitas, aqui e além, são produto de uma visão distorcida pelos contornos de uma vida que nos cega o instinto e amordaça a voz cristalina do amor sem mácula ou dor que não se subordina a padrões.
A verdade das emoções sorri, divertida, sempre que se assume foragida de condicionalismos exteriores.

Na intensidade dos meus amores, na sua força incontida, nasce a argumentação plausível quando acredito no impossível e abraço sem hesitar alguém que apaixonar a minha tentação libertária.

E me ofereça de bandeja a oportunidade que deseja quem vive o amor como ele se sente e não como ele se diz.

Correndo à solta pela planície, puro-sangue.
Livre.

E acima de tudo feliz.
01
Ago06

A POSTA NA PRIVACIDADE VIRTUAL

shark
Não sendo anónimo, já por diversas vezes aqui publiquei o meu rosto e o meu nome (alguém por mim publicou o resto que falta para todos saberem quem sou se o quiserem), fico sempre espantado quando alguém que não conheço me contacta por email. Mulheres, sobretudo, pelo estigma associado a uma cultura absurda de culpabilização da gaja que toma iniciativas.
Essa culpa assenta na interpretação doutrinada de que quando uma mulher toma a iniciativa é seguramente uma puta.

Muita gente pensa dessa forma e assume tal interpretação, o que pode suscitar faltas de respeito ou abusos de confiança. Ou ainda pior, se tivermos em conta que normalmente desconhecemos de todo o fulano do outro lado da linha.

Por isso me surpreende esse gesto quando se verifica. Pela coragem ou pela certeza que deve exigir a quem na prática abre uma nova via, privada, para a comunicação com alguém.
Desconheço o impulso que leva algumas pessoas a abrirem essa porta a estranhos, embora seja óbvio que essa porta pode fechar-se em qualquer altura (normalmente não é isso que se verifica). Sobretudo quando nem sabem ao que se expõem, pois é fácil pintarmo-nos por escrito de todas as cores na paleta.

O que está em causa é o tal estigma da iniciativa, um horror muito macho a essas coisas que constituem um privilégio de gajo e que, se calhar, até está na origem das tais interpretações erradas: “Olha, a gaja mandou-me um email. De certeza que anda à procura de qualquer coisa”. E afins.

Eu admiro a coragem de quem mete para trás das costas os medos e as falsas questões e assume um comportamento que qualquer pessoa de ambos os sexos deve por princípio ser livre de escolher. Porque reconheço o dilema subjacente, ainda que o objectivo desse contacto “arrojado” seja apelativo o bastante para vencer a renitência. Até pode ser apenas um assunto banal, uma questão menor que se pretende esclarecida fora dos olhos de outras pessoas.
Em privado, longe dos olhares que não se querem demasiado a par daquilo que temos em vista.

Isto pode soar imbecil, pois é voz corrente que já ninguém liga a estas tretas. Mas eu continuo a constatar os tais desvios que conduzem às interpretações levianas e preocupa-me que as reacções menos correctas a esses contactos possam constituir um factor de desmotivação para quem os arrisca.

Por outro lado, muitos romances secretos têm início assim, escondidas as palavras de outros olhares que não os dos interessados.

E isso por si só já basta para justificar essa aposta.
01
Ago06

AGARRADA PELAS ANCAS

shark
ceu espelhado.jpgFoto: Shark
Olhar a vida que se escapa à socapa por entre os dedos, como areia na ampulheta que nos engana com a ilusão de podermos medir o tempo que nos resta pelo tempo que se escoou.Olhar aquilo que passou e sentir que agora é sempre o momento melhor porque se antecipa o sabor do que podemos viver amanhã.

A esperança a encher-nos o peito como ar fresco do final da madrugada. A dúvida dissipada como a neblina instalada por instantes sobre o espelho de água que tão bem reflecte o céu. Um sopro de calor que as afasta com a certeza de que vale a pena lutar pelo que importa conservar, no contexto da felicidade tal como se apresenta ao nosso olhar sobre a vida que não queremos de partida.

A nossa e a dos outros, apenas uns poucos, preciosa. Quem connosco partilha as coisas de que uma vida se faz, lágrimas e sorrisos importantes, pessoas deslumbrantes porque nos arrastam seus ao longo de um caminho que exigimos comum.

Os filhos que fazemos e assim lhes oferecemos o milagre de uma vida para olhar. O amor que dedicamos, tão intenso, e aquilo que recebemos de volta como um sonho que a realidade corporiza. A tangibilidade da nossa presença nos olhos de quem observa a vida num lado de lá que é dentro de nós afinal.
A simbiose total, de vez em quando. Ou o amargo sabor de uma penosa separação. Acontecimentos que nos fazem a história contada em momentos de introspecção partilhada com a confiança que queremos depositar em alguém.

Muitos filhos da mãe, como chacais, envergam os seus punhais, traiçoeiros, e cravam-nos nas costas da alma as exclamações de medo e as reticências que nos intimidam como um gigantesco ponto de interrogação. Quantos mais se cruzarão, insuspeitos, pelo raio de visão de que dispomos sobre a vida que o acaso nos determina e apenas influenciamos nas decisões menores?

A vida com diferentes sabores, amargo e doce, salgado e picante, de todas as cores, amigo ou amante, segmento ou parcela, compete-nos vivê-la como se esta existência tão valiosa estivesse prestes a chegar ao fim.
Faz todo o sentido quando a pensamos assim, efémera, porque nos alerta para a emergência de aproveitar todo o tempo para amar.
Outras pessoas e a nossa essência também.

A vida que se tem, para olhar, usar e abusar antes que escape sorrateira. A folha derradeira no calendário que outras mãos irão rasgar um dia. O tempo parado porque fica esgotado na percepção de que podemos usufruir.

Admito partir mas exijo-me agarrado a este lado com a tenacidade desta indómita vontade de absorver aquilo que me oferecer o destino que alguém traçou (ou não) para mim.

Quero-me assim, incondicional.
Nesta vida que sinto e aprecio como uma mulher especial.

Com as duas mãos.

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