03
Ago06
FATO E GRAVATA (repost)
shark

Deitou-se arrasado, depois de um dia interminável. Nem comeu.
Sentia-se tão cansado que não tinha sono, apenas uma enorme vontade de dormir. Deitou-se de costas sobre a cama e fixou o tecto, tentando encontrar na monotonia daquele padrão ondulado a sonolência que tanto sentia precisar. Passados alguns minutos, constatou que a receita não resultava. Suspirou.
Lembrou-se de um clássico. Projectou com a imaginação uma cerca e um apreciável lote de ovídeos que se disporia a contar, até à exaustão. De cada vez que imaginava uma daquelas bolas de lã com patas a pular como um cavalo educado na melhor escola de equitação, bufava. Mas nem uma vez bocejou.
Trocou os cordeiros pela mais diversa bicharada. Cangurus e coelhos, pulgas e gafanhotos. Nem um elefante faltou à chamada, mas esse não saltou. Antes destruiu a vedação imaginada e com ela a esperança de que o expediente resultasse num sono repousante e feliz.
Acabou por se levantar, foi à janela espreitar o resto do mundo que dormia e invejar em silêncio, vento frio a soprar-lhe entre as orelhas e a gola do pijama, o descanso imprescindível que até uma cidade enorme se permitia usufruir. Sacudiu-se num arrepio. Todavia, insistiu em enfrentar a brisa glaciar daquela madrugada de final de Outono.
Estava bonito, o céu. Carregado de nuvens iluminadas pelo reflexo laranja da iluminação urbana, parecia abraçar a superfície abaixo, como uma gigantesca almofada onde os anjos dormiam ferrados e sonhavam o dia a seguir.
Ele pensava o dia acordado, gelado, em discreta vigília do sossego nocturno da totalidade dos habitantes daquela rua. Nem um gato vadio quebrava a paz daquele momento tranquilo, todos ressonavam bem alto e faziam pirraça ao protagonista sonâmbulo de um pesadelo vulgar. Acendeu um cigarro. Assim mantinha entretida a boca que reprimia a vontade de berrar o desagrado, de acordar à força a vizinhança e torná-la solidária num período difícil da vida de qualquer cidadão. Sentir-se-ia menos só, se pudesse trocar umas impressões sinceras com o pianista do lado ou com a doméstica de cima, tanto fazia, acerca das broncas que lhe atormentavam a vida e lhe tiravam o sono. Os problemas que o despertavam para a falta que faziam os outros em hora de aflição. Esta era a sua.
O relógio na cabeceira, implacável, contava em taques os segundos que se escoavam rumo à hora de levantar outra vez, os tiques diários, apressado ritual de pequenas tarefas que todas somadas pareciam inventadas só para o atrasar. Ele corria, vida em contra-relógio, sempre com medo de faltar à chamada do autocarro, carreira vinte e um, que passava na rua detrás precisamente às oito horas. Nem mais um minuto, motorista cumpridor de um raio que o parta, o seguinte só passado um quarto de hora e o patrão não perdoava tanta desculpa igual. Como se fosse obrigação de alguém ter pressa de chegar à merda de emprego que sua alteza se encarregara de providenciar. Era a aventesma do patrão que o privava de dormir, com a miséria de ordenado que não compensava o serviço de qualidade superior que lhe prestava aquele magnífico funcionário que merecia uma promoção. Mas isso, o sacana não apressava. Filho da mãe!
Sentiu o sangue fluir pelo corpo, rompendo a custo as barreiras de mau colestrol que haviam de o conduzir ao enfarte de miocárdio tradicional do operário urbano, moderno, atascado em papelada num agitado escritório. Morriam novos, as estatísticas o diziam, os trabalhadores do terciário mais empenhados em singrarem na vida, em progredir. Sobretudo os que não dormiam, pensou. E sentiu ainda mais o frio da madrugada, apagou o cigarro e enfiou nos lençóis a carcaça dorida, já o sol rasgava a noite por detrás do horizonte de betão. Precisava mesmo de dormir.
Mal teve tempo de encostar o rosto no travesseiro, em sonhos, que o maldito despertador desatou numa berraria. A insónia era mentira e estivera sempre a dormir. Deitado de costas, fato e gravata, tal e qual adormecera, acordou mil vezes mais fatigado que no dia anterior.
Acabou por se atrasar a sair para a rua, tentando remediar sem sucesso os vincos na indumentária.
Do outro lado da cidade, nesse mesmo dia ao jantar, um menino contou aos pais, impressionado, como no caminho para a escola, pelo vidro da traseira do vinte e um, viu pela primeira vez na sua vida um homem crescido a chorar, ajoelhado num abraço a uma paragem de autocarro vazia.