Foto: SharkPercorro em silêncio a corda esticada entre o ponto de partida e o ponto de chegada, equilibrado apenas pelos braços abertos como as asas dos anjos que me transportem para um mundo melhor. Se escorregar ao longo do caminho, sem rede para me amparar a queda no vazio que multidão alguma conseguirá preencher.
Um passo de cada vez, avanço sem hesitar. Não fico no mesmo lugar mais do que o tempo necessário para reconhecer a validade da minha presença na realidade de quem partilha o mesmo espaço por simples coincidência temporal.
Como um estorvo não me aceito, jamais.
Avanço para a outra margem do fosso escavado a preceito pelo rio que antes ali passou, equilíbrio precário, confiança na coragem cega que move os que preferem a adrenalina do risco à naftalina da estagnação. Um passo de cada vez, sem pressa. Antes que arrefeça o corpo inerte do homem que deixei para trás, simbólico, o meu passado assim representado no cadáver a fingir de alguém que esquecerei na outra ponta da corda. Eu mesmo, o que fui naquele lugar a que virei as costas quando chegou o momento de mudar de paradeiro.
Imagem parada, fotografia, memória arquivada de algo que existia antes de o tempo rasgar uma porta de saída na parede daquele presente que se passou.
Uma corda, em vez da ponte, o desafio arrogante de quem me conhece o bastante para adivinhar a reacção. Braços abertos, equilíbrio, para receber o abraço amigo ou amante de quem me espere na outra ponta ou para planar a sós até ao desfecho que o destino me reservar.
Não me impede de avançar o receio que a incógnita suscita.
Feliz é quem acredita na navegação serena e sem medos de todas as almas sem âncora.
E eu sinto orgulho por ultrapassar cada escolho e abraçar, nos portos seguros por onde a minha existência passa de raspão, as vidas em trânsito que renegam esse travão de recurso.
Na corda bamba nos cruzamos ao longo do percurso, ou nesse mar que navegamos sem coordenadas, sem faróis ou estratégias sofisticadas para nos guiarem até ao momento seguinte de intersecção.
Que acontecerá ou não, num qualquer ponto distante do meu horizonte mutante.
Onde a esperança nunca se põe.