Foto: SharkAmava-me de uma forma muito intensa, quase desesperada. Porque via, porque sabia que eu não era nessa altura mais do que um meteoro que lhe passava pela vida a correr.
E eu percebia o seu anseio em aproveitar a sorte que lhe restava, na sua perspectiva. Que na minha as coisas assumiam outras proporções e via na sua paixão devotada apenas mais uma desilusão que a minha presença na vida ofereceria a alguém.
Os olhos dela ganhavam mais brilho quando eu aparecia no Dois. Nesse dia derradeiro passava a minha malha preferida dos AC/DC, Back In Black, quase um hino ao negro algo gótico que me trajava na altura. Como sempre, aproximei-me do balcão para pedir a cerveja sem a qual a minha noite na pista não podia oficialmente começar. E como sempre já vinha acelerado de outras andanças, fumos em barda e cerveja até doer a pila de tanto mijar.
Mas raramente perdia o controlo de mim e dei por ela nem dez metros adiante, à espera da sua deixa para poder beijar-me como se o seu mundo acabasse amanhã. E fazia-me sentir que esse mundo era eu e eu achava que não valia a pena a aposta, ela só perdia o seu tempo, mal investido num homem que só sabia fazer contas de sumir. Para outro lado qualquer. E depressa.
Era esse o ritmo dos meus dias e nada nem alguém conseguia meter-me travão.
Ela nem tentou. Apenas se aproximou conforme podia, só às vezes, quando eu não desaparecia para um ponto qualquer no horizonte que me parecia bom para observar o pôr-do-sol. E só regressava algum tempo depois, dias até. E ela entregava-se de novo a mim, depois de me chamar a atenção com insistentes carícias no cabelo comprido e revolto que tanto apreciava. E eu, sem assumir qualquer compromisso, oportunista, não conseguia rejeitar tamanha devoção e deixava-me arrastar pela sua beleza e pela sensualidade que transparecia de toda aquela mulher.
Nem sei quanto tempo as coisas se mantiveram assim. Ela a amar-me e eu a fugir, não dela mas de mim. Na correria, com medo que acabasse a energia que me empurrava mais além. O mundo inteiro, era já ali. E eu não podia parar, a corrente quase a acabar e a malta amiga a incentivar-me para avançar um pouco mais na loucura de cada dia. O limite mais distante, o desafio mais importante, mulheres bonitas, grande som, toneladas de chamon, litros de cerveja e muito futebol.
A festa da vida em movimento e ela, terrivelmente apaixonada, a atrapalhar a minha passada quando o que eu queria era acelerar.
Egoísta, nem hesitei. Sabendo que nunca abrandaria, chegou enfim o dia em que parei. A corrida dela na minha peugada, demasiado próxima, demasiado óbvia, ao ponto de me embaraçar. Com o excesso de amor (como é isso possível)? Mas assim parecia na altura, essa doença cuja cura resolvi encontrar antes que a situação ficasse descontrolada.
Jogada combinada, a malta a dar de frosques de mansinho e eu a levá-la para um canto onde a surpresa foi minha pois a ela bastou reparar na minha expressão.
Depois de meia dúzia de palavras vãs, desculpas esfarrapadas, cortesia, acho que lhe pedi desculpa (e bem podia), beijei-a na testa e virei-lhe as costas. Abri caminho pelo meio da pista à bruta, como se fosse de toda aquela gente a culpa de eu ser um gajo assim. Incapaz de valorizar a paixão, de abrandar a pressão da fúria de chegar depressa a lado algum.
Rosto fechado e cérebro anestesiado pela mistura de sensações malucas. Tudo no extremo, sempre um nadinha mais para lá do risco a não pisar. Para provar aos outros o que me desmentia nos raros momentos de tranquila solidão.
O mais atrevido, o mais arrojado, o mais capaz de converter o medo e o bom senso em instantes patéticos de absoluta estupidez em riscos desnecessários que corri.
Antes isso, essa glória dos danados, essa revolta mal contida que se libertava enraivecida no seio de um grupo dos meus iguais. Antes isso do que um amor comprovado, uma companheira dedicada à minha satisfação. Mas que era doce e tentava acalmar-me com o som quente da sua voz e as mãos como bocas no meu cabelo, saboreava-me com os dedos e eu descontraía mas depois qualquer coisa acontecia e eu arrancava rumo a outro pedaço de vida qualquer. E sentia-me desconfortável naquele papel.
Hoje é outro, o meu desconforto quando olho para trás em busca das memórias que me merecem as pessoas que tentaram fazer-me feliz. Não conseguiram, a esmagadora maioria, senão em breves instantes, amadas ou amantes, quando me permitia uma pausa na correria e atinava na boa.
Mas ela conseguiu sempre respeitar-me, entender-me, inspirar-me confiança, confiar em mim.
Nunca me permitia experimentar a solidão.
Ela já não estava por perto quando finalmente percebi a falta que me fazia o calor do seu olhar e o toque suave das suas mãos.
Mais a sua companhia, no alto da falésia da Boca do Inferno que eu gostava de chamar minha, o meu miradouro interior que só ela conheceu, a única honraria com que a distingui, tão especial, depois de tudo quanto deu sem nada exigir em troca. Apenas parcelas de mim, em trânsito para outra emoção forte que não a incluía. E ela esperava e sofria.
Recordei há dias o seu amor incondicional que desdenhei, enquanto deixava o olhar percorrer as ondas como fizemos em silêncio ou em conversas muito íntimas, a dois. Permiti-me esse pecado capital na minha estrutura sempre tão avessa à saudade e tão alérgica às despedidas, a propósito já nem sei do quê...
Talvez a propósito de mim, do muito que já perdi pelo que fui e do que ainda perderei pelo que sou.