O meu ego apanha-me de surpresa com frequência, nas suas cogitações que o elevam a bordo de um ascensor feito de papelão até um patamar onde só ele seria capaz de se (nos) colocar.
Ontem, quando me apercebi que ia voltar a deitar-me às quinhentas, resignei-me com essa propensão para os hábitos de ave nocturna que arrasto comigo desde a adolescência como uma espécie de maldição.
É que deitar tarde e cedo erguer não dá cabo da saúde mas, e embora isso constitua uma vantagem para quem calça o 44 e não pretenda ficar sem soluções nessa matéria, também não faz crescer.
Mas o pior é a constante violação de uma mania muito arreigada em patrões, em chefes e em subordinados ambiciosos, a da pontualidade.
Um gajo deixa-se dormir e depois chega tarde a todo o lado, exibindo umas olheiras até aos joelhos e um estranho brilho no olhar perante a palavra café.
Passei a vida nisto. E continuo a passar.
É um descrédito para qualquer pessoa, abdicar dessa prova de sentido de responsabilidade que é acertar a vida ao minuto para nunca falhar com a hora acordada. E eu a essa hora estou a dormir
Contudo, nunca assumi o sentimento de culpa inerente a essa condição pública de baldas que vesti na escola, nos sucessivos empregos, no trabalho por conta própria e em quase todos os compromissos sociais. Claro que dei sempre o litro para compensar essa falha imperdoável na ética do cidadão modelo, mas nisso ninguém repara.
E é esta a lacuna que o meu ego explora, tão arrogante e autónomo, para se (nos) instalar numa posição mais confortável quando o sol-que-já-vai-alto se substitui ao despertador entretanto silenciado à bruta ou farto de tocar pró boneco,
Acredita ele (o meu ego) que essa tendência para me deitar nunca antes da uma da manhã é uma prova inequívoca da minha superior capacidade cerebral, uma espécie de confirmação espontânea do elevado QI que todos os egos gostam de assumir (normalmente pela surra).
E o tipinho fornece-me exemplos.
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Já reparaste, méne (isto é o ego a falar),
que só os lorpas, os caralhinhos da Bélgica(*) e os escravos do dever é que se deitam a horas? e prossegue, convicto. -
E repara bem nisto: os Malucos do Riso e os Batanetes passam no horário nobre mas o Gato Fedorento só é transmitido quando os adeptos do humor boçal já estão a roncar ao lado das suas matronas. E as séries e os filmes fixes? A mesma merda
O meu ego tem destas cenas um bocado parvas, tiques de superioridade que lhe ficam bem (ego é mesmo para essas coisas) mas que soam um nadinha a intelectualidade de pacotilha. Mas enfim, ele lá continua com as suas teorias e eu a levar com elas.
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E a náite, pá? Os sítios baris, onde um gajo conhece pessoas interessantes (ele pensou gajas boas, mas eu sou mais comedido)
estão fechados de dia. E porquê? Porque o sol ilumina os operários, a malta que bule e não liga aos prazeres da vida. Os outros, como tu, só precisam do sol quando se esticam no areal. E é de olhinhos fechados, que o excesso de luz é uma gaita quando um tipo goza a vida a rasgar a escuridão.
Baralha-me, este ego tão convincente nas suas manias. Mas claro que eu não cedo fácil à tentação de acreditar nestas lérias, sobretudo quando enfrento as carrancas de quem leva secas infindáveis à espera da minha chegada triunfal.
Não sou pontual e nem o nascimento da minha filha prematura alterou essa premissa (só acordei duas horas depois de ela vir ao mundo - embora em compensação tenha sabido antes da mãe que o milagre da vida estava a acontecer no seu interior).
Detesto horas marcadas seja para o que for, acima de tudo se são marcadas para antes do almoço. E isso, como podem adivinhar, constitui um factor de perturbação no quotidiano de qualquer um.
Passo a vida a fintar essa mania colectiva do cumprimento de horários, desculpas esfarrapadas, histórias mirabolantes, justificações impossíveis para a minha atitude irreverente perante este convénio agressor. Funciono melhor quando os outros se predispõem a dormir, às duas ou às três da madrugada. E gosto mais de assistir ao nascer do sol quando isso marca o final de um dia e não o seu despontar.
O meu ego acha isso normal, mas eu não, por causa das evidências. Pelo menos, é o que os outros me dão a entender, chocados com a minha falta de brio horário que tantos transtornos tem causado aos mais cumpridores.
Gostava de não hostilizar a malta com as minhas falhas nos seus esquemas meticulosamente planeados, nos seus orgulhos exacerbados pelo rigor de uma pontualidade britânica. Mas esse é um factor que não consigo controlar, passo a vida a atrasar os compromissos já adiados, mesmo os calendarizados com enorme antecedência, importantes, decisivos até.
Faz parte do que sou.
Tal como este lençol que vos dou, impróprio para uma manhã de segunda mas em perfeita consonância com a minha dificuldade em me manter acordado no período mais atroz de qualquer semana da minha existência activa e, de forma precária, funcional.
Partilho convosco o bocejo e facilmente antevejo a soneira que esta prosa vos dá.
Este mundo não está preparado para mim. E vingo-me dele assim, manifestando o meu desagrado em monólogos inconsequentes e banais.
As vítimas ocasionais são as poucas pessoas que me concedem alguma atenção. Como tu, que aterraste neste espaço onde um bacano qualquer dá largas ao seu desconforto pelo início de mais um ciclo laboral. Um desabafo, afinal, de quem preferia ter ficado na cama.
Não deve haver forma mais sonífera de começar uma semana, penso eu com o ego mais os botões.
Mil perdões. Neste teste à vossa paciência está embutida a minha má consciência e a alergia às segundas. Mas não podem dizer que não estavam avisados (ver título da posta)
Lá pra quinta a coisa melhora
(*) Um caralhinho da Bélgica é uma daquelas alimárias sonsas, uns totós todos engomadinhos a quem tudo faz confusão se sair dos carris pré-determinados que lhe guiam a existência. Como a hora certa para almoçar, para fazer chichi ou para publicar uma posta a dar conta de mais uma agitaçãozinha na sua fezadazinha tão atrevidazinha que até lhe provoca uma insónia até uns largos minutos depois da meia-noite, bem dentro da madrugada