Já ultrapassa os mil e setecentos comentários,
o mais animado velório virtual de que há memória. O fenómeno deixa-me boquiaberto e confirma as minhas suspeitas de que paira algo de estranho na blogosfera.
O
Semiramis, de que vos falei tempos atrás a propósito do alegado falecimento da respectiva autora (continuo sem saber se aconteceu ou não esse óbito), transformou-se num espaço de convívio entre cibernautas, numa espécie de chat room mórbida onde a malta vai fazendo amizades e trocando umas larachas como se o blogue em causa continuasse activo como dantes.
E continua, pois ninguém parece empenhado em encerrar o espaço. Vendo bem as coisas, considerando o cariz surrealista do fenómeno, até acaba por ser uma decisão compreensível(?). O cadáver do Semiramis (sem actualização desde o início de Fevereiro) continua em missa de corpo presente e ninguém parece incomodado com a putrefacção
Não quero com isto deixar implícito qualquer juízo de valor, até porque esgotada a maluqueira X-Files do mistério do desaparecimento da Joana, a rapaziada elevou o nível dos comentários ao ponto de a caixa se tornar poliglota. Em inglês, por exemplo, ou em árabe, encontram-se algumas pérolas no meio de toda aquela prova de vida em pleno funeral. O mais longo e participado de que há memória, julgo eu, na blogosfera lusa.
Só que, vendo a coisa de fora, aquilo deixa uma sensação algo desconfortável. Reparem: trata-se de um blogue magnífico que se tornou no mais comentado de sempre no Weblog, mesmo antes do seu epílogo com contornos de alucinação colectiva. Um dia a autora deixou de postar. Alguém disse que ela morreu. A malta debateu o assunto até ao osso.
E depois deixaram-se ficar na palheta, pois a capela virtual parece climatizada e confortável.
Desculpem-me a estupefacção, mas se a Joana morreu há algo de esquisito na sobrevivência tão activa do Semiramis. Ou pelo menos algo digno de ser apreciado à luz de algum critério que me escapa. Eu vejo a coisa da seguinte forma: se a autora morreu, o seu blogue transformou-se numa sala de velório à americana onde só faltam uns salgadinhos e umas bebidas para a malta de passagem não engolir em seco perante tudo aquilo que lê.
Para entenderem a razão da minha perspectiva perturbada, vejam a coisa no seguinte prisma: há milhares de blogues em constante actualização, alguns (a esmagadora maioria) às moscas em matéria de comentários. E a malta decide abancar num espaço que parou no tempo?
Mais ainda, a blogosfera é feita por pessoas. Se alguém morresse e deixassem o cadáver em decomposição ao longo de meses na casa mortuária achariam isso normal?
É isto que me faz sentir que há uma forma qualquer de demência que se instala no comportamento das pessoas (nomeadamente na alteração à sua escala de valores) quando integradas nesta comunidade virtual.
E já bastaria a proliferação de conflitos e de desaguisados estapafúrdios entre cromos que em condições normais poderiam até ser bons amigos lá fora. Eu já protagonizei alguns desses episódios sem nexo
Confesso que só me ocorre, ao visitar o Semiramis (onde pelo menos aconteceu a morte cerebral do blogue e da autora), a imagem do tal velório que a malta converteu numa casa do povo onde às tantas já ninguém se lembra de onde está e de como tudo aquilo teve origem, não havendo uma alma caridosa que se condoa quando contempla o caixão ao ponto de sentir o impulso irreprimível de lhe fechar a tampa.
Ou, pelo menos, de desligar piedosamente a máquina que lhe anima a respiração artificial.
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