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Mai06
A POSTA QUE GANHO
shark

Vejo ao longe o muro e abrando a passada para melhor o percepcionar. Para respirar. Ao longo da linha do meu horizonte mais distante, o que a vista mal alcança, a imponente barreira espreguiça-se de tédio perante a minha figurinha ridícula, um ponto escuro com pernas, e aguarda a minha chegada à sua beira.
Para desistir.
Mochila às costas, decido avançar em direcção à parede colossal que me separa do que pretendo, determinada, cada vez mais alta na minha perspectiva, cada vez mais intransponível. Por todo o lado os desastres naturais e eu pelo meio a caminhar, sem receio de outro mal que não o que resida em mim. A erva daninha na vontade que definha à mercê da aparente irrelevância do objectivo final.
Mas eu insisto, resisto, não consigo parar.
Caio, levanto-me, sacudo o pó.
Avanço e caio outra vez.
Repito o desafio, cabeça erguida, a terra prometida ou outra merda qualquer, do lado de lá, inacessível. E eu acho incrível a minha estranha persistência, joelhos esfolados e ar de vencedor. Apoiado no amor que move todas as causas que algum dia abracei.
As pedras no muro sorriem de desdém, vencedoras de antemão, testemunhas silenciosas de um sem fim de tentativas frustradas, de lágrimas vertidas pela cedência do sonho impossível de concretizar. Pelo menos à primeira, penso eu, enquanto percorro mais um resto da distância, o rosto da esperança e a força do desespero, a certeza absoluta de já ter estado mais longe dali.
O medo abandonado pelo caminho, como lastro vertido para aliviar a minha carga, a mija atrevida contra o gigantesco paredão.
As pedras parecem rir à gargalhada, beijadas pelo vendaval. E afinal riem de mim, o homenzinho como os outros que ali deixaram o orgulho e a coragem, desistência, o fim da magia sonhada, da glória esperada, meia vitória sem brilho num eterno segundo lugar.
E eu a imaginar o outro lado da cena, proibido, o corpo sentado e a mente alucinada a voar. Para lá do topo daquela coisa sinistra, ergo a crista como um galo e rosno como um cão, a minha ira pela sua intenção de me deter. E eu não quero conhecer o ponto onde acaba o caminho, a última estação, numa terra de ninguém, amaldiçoada, pelo demo baptizada com o nome de frustração.
Cabelo solto ao vento, costela imaginária de um descendente de Sansão, procuro o alento na palma da mão. Colo-a agora no obstáculo e faço-o sentir o meu calor, transmissão de energia, do mérito e do valor o troféu ambicionado, o prémio da utopia ao alcance do meu olhar.
Que percorre aos poucos a extensão da tarefa, medindo com o rigor possível a dificuldade da missão.
Ao longe o som de um trovão, mais o brilho fugaz da electricidade cuspida pelo céu.
Sem tempo a perder, pouso a mochila, retiro uma estaca de metal e outra a seguir. Mais o martelo e as cordas, silêncio mortal, agora que o muro despertou para a natureza da minha intenção. Chuva de pedras, avalancha, eu perco a paciência pela má vontade do destino que construiu o mamarracho, farto das trevas quando consigo vislumbrar a luz. Do lado de lá.
Levanto a cabeça para gritar a minha vontade, cravo na pedra o espigão, concentrado na fúria que espanta a maldição, à martelada. E dou início à escalada, sem hesitar.
Acordo encharcado em suor.
Ainda consigo ouvir o som distante, macabro, das pedras do muro a gemer.
Debruço-me então sobre o parapeito da janela que abro e fixo o olhar naquele sol portentoso a nascer.
A vida no seu melhor.
Afinal já lá estou.
