Foto: sharkinhoAberrante, aquele local parecia encaixado no cenário com o único propósito de realçar a pobreza franciscana da paisagem que o rodeava. O mar ajuda sempre a compor o boneco, mas a zona primava por uma esterilidade que se reduzia a um aglomerado disperso de calhaus negros e sem vida, até onde a vista alcançava solo firme. Excepto ali.
Tão disparatado como um oásis no meio do areal sem fim, o arvoredo explodiu de entre o tapete de rocha e recreou umas centenas de metros quadrados de paraíso, na única mancha verde visível a quilómetros, para além do próprio mar em dias de muito sol.
Aquela zona costeira não fazia parte do florescente litoral que atraía muitos estrangeiros para o país. Sem praias, com um clima hostil, como se a natureza aproveitasse aquele espaço para ensaiar as punições com que tentava vergar a soberba humana, pouca gente tendia a fixar-se em tais paragens.
Mas sempre houve quem buscasse no inóspito a resposta para as perguntas que o comportamento dos outros nos suscita e na solidão a paz que as multidões parecem nunca conseguir conservar. É desespero de causa, a fuga enganosa para um ermo assim.
Todavia, algures no século XVI, umas quantas famílias plantaram um conjunto de casas à beira da falésia, determinadas ninguém sabe pelo quê a criarem raízes por ali. Como as árvores surgidas do nada, inclinadas para terra como que sopradas pelo mar. Mas era o vento que as empurrava a todo o tempo, o mesmo que trouxera um punhado de gente apenas com o propósito de fugir. De quê, ninguém sabe. Nem nos registos mais antigos, quase dos dias do primeiro lote de povoadores, se encontrariam referências à verdadeira motivação do grupo de pioneiros que escolheram desbravar a aridez de uma terra por baptizar.
Baptizaram-na uns cinquenta anos depois, quando a décima habitação construída, mais uns barracões para resguardo dos artefactos de pesca, lhe justificaram um nome. Vila Aparecida. Do nada, deveriam acrescentar, agora que o tempo passado sobre a data da fundação já permite extrair a mais clara das conclusões: ninguém quer morar num sítio assim.
Continuam a ser poucos os que ficam, excepção criada apenas pelo grupo de pessoas associadas à manutenção do velho e quase inútil farol. Algum iluminado cacique impingira, no glorioso ano de 1834, a ideia de proteger a navegação dos temíveis rochedos que haviam despedaçado, no ano anterior, o casco de um importante galeão. Saíra cara à Coroa a factura daquele naufrágio, tão cara que justificaria a construção do mais imponente e absurdo farol da história da nação.
Ninguém navegava em águas tão hostis. Apenas umas quantas embarcações desnorteadas, fustigadas por um temporal, que o mar decidia empurrar naquela direcção, de nada lhes valia a luz intensa que anunciava a presença próxima da morte, dada como certa naquela armadilha de rochas afiadas e letais. Vila Aparecida era nome de maldição entre os velhos lobos-do-mar. Sobretudo os poucos da terra que sobreviviam à faina impensável que insistiam manter, gerações de homens tragados pelo oceano, fama de bravos e insanos que pouco proveito extraiam das águas revoltas com barquinhos de brincar. Servir-lhes-ia de algum consolo a luz não muito distante, ilusão de salvamento que raramente chegava a acontecer.
Na falésia, afogavam-se em lágrimas as viúvas condenadas a mirrarem sozinhas, ressequidas pela salmoura que o vento trazia das ondas e borrifava no casario.
Podia ler-se, numa crónica muito antiga de um pároco local, a história de um menino que todos os dias rumava para o amontoado de árvores, pouco antes do nascer do sol, à procura de uma caravela que o levasse dali. Vira uma, em pequeno, que acabaria desfeita em pedaços de madeira espalhados à tona. Teria sido tão grande o desgosto que o petiz chorou, afirmava o escriba insuspeito, uma semana seguida. Depois, parou de chorar. Quem por ele choraria, dez anos passados sobre a primeira tragédia, seria a mãe que o viu deitar-se ao mar em perseguição alucinada de um barco distante que só ele descortinara no breu. Era tão irreprimível assim a sua vontade de fugir. O corpo do rapaz nunca regressaria e, por indicação dos religiosos e dos políticos locais, acabaria por se erigir outro mamarracho na falésia sob a forma de uma diminuta capela. Um mausoléu, para espantar assombrações, tal e qual o velho farol agora em ruína...
Sentado na copa de uma árvore vergada, tento imaginar a figura do menino cujo trauma lhe cristalizara na alma a vontade de sair dali, olhando o mar em silêncio à procura de recortes mais escuros ainda do que o horizonte habitual. De sombras da esperança de um dia partir.
E recordo outro menino que eu fui, diariamente ao pôr-do-sol, à espera das estrelas no céu que simbolizavam a minha própria vontade de fugir, o destino alternativo à miséria de vida que me esperava ali. Naves espaciais pilotadas por mim. Ou discos voadores com pequenos marcianos que me sabiam disponível e preparado para a longa viagem. Só de ida, que o regresso não seria hipótese a considerar.
Nunca apareceram, os alienígenas ou os meus talentos inatos de explorador espacial. Mas não tive a coragem e a loucura necessárias para me catapultar da falésia rumo ao céu estrelado e ao sonho de recomeçar a existência num melhor ponto de partida. Optei pela resignação. Aprendi a arte de iluminar o vazio, sempre que surge uma verba para reparar o obsoleto mecanismo do facho que desvenda aos escassos habitantes de Vila Aparecida a realidade do seu cativeiro. Como o holofote sinistro de um campo de concentração, sem nada de bom para iluminar.
Destilo as amarguras de faroleiro frustrado na noites inúteis de vigília do vazio.
Todavia, e isto desconcerta-me, quando a máquina suspende os gemidos de angústia por lhe prolongarem a agonia, aproveito a folga forçada e a luz apagada para olhar em frente e na minha mente permitir que desfilem os contornos difusos, as sombras da minha ilusão de fugir um dia, escondidas por detrás da minha vontade rejeitada de viver num lugar triste mas ao qual sempre senti (e sei) realmente pertencer.