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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

12
Mai06

PAGO A PRONTO (Repost)

shark
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Queria que a verdade prevalecesse. Integra, total. Não gosto de meias verdades e encaro como repugnantes as mentiras por omissão ou as mentiras piedosas que se utilizam para escamotear as realidades que queremos ver escondidas no fundo do baú. Como em qualquer mentira, afinal.
Não entendo porque fugimos como coelhos assustados para uma toca qualquer, sempre que não conseguimos enfrentar as consequências do que fomos na interpretação do que somos e do que afirmamos ser. Não entendo porque hipotecamos a confiança dos outros por medo das nossas revelações. E nem quero entender.

Queria apenas que a verdade servisse em todas as ocasiões e não apenas nas que nos servem qualquer propósito, legítimo. Queria que as mentiras e as omissões não minassem a confiança total que gosto de depositar nas pessoas, não me obrigassem a todo o instante a analisar incongruências e a pedir para elas uma justificação. Que chega trapalhona, envergonhada, camuflada num lapso de memória que alivia o desconforto de quem prefere fugir.

Queria que a coragem andasse de mãos dadas com todo o tipo de emoções. A verdade surgiria como uma consequência natural, pois a mentira e a sua amiga omissão servem apenas como tábuas de salvação efémeras para o que a vida se encarrega de descobrir, depois. Por acaso, ou talvez não...

Queria que os outros não receassem arriscar, que apostassem na minha lealdade, na minha capacidade para ser o fiel depositário de todos os seus medos, de todas as verdades temidas que só não corroem quando expurgadas, quando contadas a quem as mereça e saiba ouvir. As mentiras, como as omissões, posicionam-se num espaço negro da nossa consciência e envenenam-nos as reacções. Ficam demasiado próximas da traição.

Queria que as coisas acontecessem com espontaneidade, coerentes, frontais. Que as peças do puzzle não fossem apenas pedaços mal encaixados pelo esforço inútil do meu raciocínio ou da minha imaginação. Queria a confiança dos outros para lhes poder provar a minha, sólida e incondicional.

Tenho para mim como certa uma vida feita de utopias, de ilusões, de histórias mal contadas que me induzem à desconfiança e ao temor.
Nunca saberei perdoar a quem algum dia me enganou, nos pequenos detalhes como nas coisas relevantes. Não sei perdoar a cobardia nem recuperar a confiança que me escamoteiam.
Não sei entregar-me às prestações.
12
Mai06

A POSTA COBARDE (Repost)

shark
penitencia.gif

Às vezes as pessoas surpreendem-me. Às vezes não. Existem formas de identificar nos outros as hesitações que contrariam a sua vontade expressa, aquilo em que apenas anseiam acreditar.
Mas não acreditam de facto, pois não arriscam. Os riscos que corremos são uma bitola para avaliar a força das nossas convicções. E das nossas paixões. Se não arriscamos, é porque não acreditamos nas hipóteses de sucesso da nossa empreitada ou não confiamos nas certezas apregoadas na primeira pessoa.

Eu admiro as pessoas corajosas, as que são capazes de assumirem o que dizem, de fazerem aquilo a que se propõem. Sem medo nem meias tintas ou mensagens subliminares, arriscando de facto. Admiro-as e também gostava de me ver assim. Como gostava de o ver noutras pessoas. Não é bem assim e isso acaba por se amplificar nos meandros da blogosfera, onde podemos dizer tudo mas recuamos perante o papão da opinião de terceiros, condicionamos a nossa liberdade de expressão. E podemos induzir em erro as outras pessoas.

Não sou melhor do que os outros nesse aspecto. E também tenho momentos de hesitação. Mas quando me decido, avanço e fico a aguardar as repercussões. Nem sempre são agradáveis, as repercussões. Podem até implicar sérios riscos de perda, a níveis bem reais, exteriores a este mundo à parte que construímos a cada instante.
Contudo, os riscos existem para aprendermos a enfrentá-los. Precisamente na medida dos valores em causa, da nossa coragem ou da nossa determinação. E essas não se avaliam pelas nossas palavras mas pelas nossas acções (as palavras também podem agir).

A blogosfera empurra-nos para as entrelinhas, para as mensagens cifradas que dizem tudo sem nada esclarecer. Quem quiser que adivinhe.
Às vezes não pode ser assim.
Para não dar margem a equívocos, falsas esperanças e futuras desilusões. Para afirmar o que somos, aquilo em que acreditamos. Para definir perante os outros as regras do jogo que entendemos aplicar, num dado momento e em circunstâncias especiais. Se são mesmo essas as que queremos jogar e não alimentamos fantasias ou ilusões nos bastidores da nossa intenção.

Gostava de seguir por esse caminho, mas tenho que alinhar pela bitola mais comum. Não por medo do risco, mas pelo sentido das proporções, do equilíbrio que deve existir entre as apostas de cada um. Nem todos sabem merecer essa frontalidade que afinal mesmo a blogosfera desmascara como mera utopia. Salvo raras excepções. E nem todos a sabem enfrentar.
Por isso esta posta não é corajosa, embora diga o que me vai na alma e pretenda deixar tão clara quanto possível a ideia que tenho tentado transmitir por outras vias. Quem viu já sabe. Quem não viu já tem forma de o saber.
Acho que assim fica tudo dito na mesma.
12
Mai06

PRISIONEIRO DA SOMBRA (Repost)

shark
gaivotas de volta do farol.JPGFoto: sharkinho
Aberrante, aquele local parecia encaixado no cenário com o único propósito de realçar a pobreza franciscana da paisagem que o rodeava. O mar ajuda sempre a compor o boneco, mas a zona primava por uma esterilidade que se reduzia a um aglomerado disperso de calhaus negros e sem vida, até onde a vista alcançava solo firme. Excepto ali.
Tão disparatado como um oásis no meio do areal sem fim, o arvoredo explodiu de entre o tapete de rocha e recreou umas centenas de metros quadrados de paraíso, na única mancha verde visível a quilómetros, para além do próprio mar em dias de muito sol.

Aquela zona costeira não fazia parte do florescente litoral que atraía muitos estrangeiros para o país. Sem praias, com um clima hostil, como se a natureza aproveitasse aquele espaço para ensaiar as punições com que tentava vergar a soberba humana, pouca gente tendia a fixar-se em tais paragens.

Mas sempre houve quem buscasse no inóspito a resposta para as perguntas que o comportamento dos outros nos suscita e na solidão a paz que as multidões parecem nunca conseguir conservar. É desespero de causa, a fuga enganosa para um ermo assim.
Todavia, algures no século XVI, umas quantas famílias plantaram um conjunto de casas à beira da falésia, determinadas ninguém sabe pelo quê a criarem raízes por ali. Como as árvores surgidas do nada, inclinadas para terra como que sopradas pelo mar. Mas era o vento que as empurrava a todo o tempo, o mesmo que trouxera um punhado de gente apenas com o propósito de fugir. De quê, ninguém sabe. Nem nos registos mais antigos, quase dos dias do primeiro lote de povoadores, se encontrariam referências à verdadeira motivação do grupo de pioneiros que escolheram desbravar a aridez de uma terra por baptizar.
Baptizaram-na uns cinquenta anos depois, quando a décima habitação construída, mais uns barracões para resguardo dos artefactos de pesca, lhe justificaram um nome. Vila Aparecida. Do nada, deveriam acrescentar, agora que o tempo passado sobre a data da fundação já permite extrair a mais clara das conclusões: ninguém quer morar num sítio assim.

Continuam a ser poucos os que ficam, excepção criada apenas pelo grupo de pessoas associadas à manutenção do velho e quase inútil farol. Algum iluminado cacique impingira, no glorioso ano de 1834, a ideia de proteger a navegação dos temíveis rochedos que haviam despedaçado, no ano anterior, o casco de um importante galeão. Saíra cara à Coroa a factura daquele naufrágio, tão cara que justificaria a construção do mais imponente e absurdo farol da história da nação.
Ninguém navegava em águas tão hostis. Apenas umas quantas embarcações desnorteadas, fustigadas por um temporal, que o mar decidia empurrar naquela direcção, de nada lhes valia a luz intensa que anunciava a presença próxima da morte, dada como certa naquela armadilha de rochas afiadas e letais. Vila Aparecida era nome de maldição entre os velhos lobos-do-mar. Sobretudo os poucos da terra que sobreviviam à faina impensável que insistiam manter, gerações de homens tragados pelo oceano, fama de bravos e insanos que pouco proveito extraiam das águas revoltas com barquinhos de brincar. Servir-lhes-ia de algum consolo a luz não muito distante, ilusão de salvamento que raramente chegava a acontecer.

Na falésia, afogavam-se em lágrimas as viúvas condenadas a mirrarem sozinhas, ressequidas pela salmoura que o vento trazia das ondas e borrifava no casario.
Podia ler-se, numa crónica muito antiga de um pároco local, a história de um menino que todos os dias rumava para o amontoado de árvores, pouco antes do nascer do sol, à procura de uma caravela que o levasse dali. Vira uma, em pequeno, que acabaria desfeita em pedaços de madeira espalhados à tona. Teria sido tão grande o desgosto que o petiz chorou, afirmava o escriba insuspeito, uma semana seguida. Depois, parou de chorar. Quem por ele choraria, dez anos passados sobre a primeira tragédia, seria a mãe que o viu deitar-se ao mar em perseguição alucinada de um barco distante que só ele descortinara no breu. Era tão irreprimível assim a sua vontade de fugir. O corpo do rapaz nunca regressaria e, por indicação dos religiosos e dos políticos locais, acabaria por se erigir outro mamarracho na falésia sob a forma de uma diminuta capela. Um mausoléu, para espantar assombrações, tal e qual o velho farol agora em ruína...

Sentado na copa de uma árvore vergada, tento imaginar a figura do menino cujo trauma lhe cristalizara na alma a vontade de sair dali, olhando o mar em silêncio à procura de recortes mais escuros ainda do que o horizonte habitual. De sombras da esperança de um dia partir.
E recordo outro menino que eu fui, diariamente ao pôr-do-sol, à espera das estrelas no céu que simbolizavam a minha própria vontade de fugir, o destino alternativo à miséria de vida que me esperava ali. Naves espaciais pilotadas por mim. Ou discos voadores com pequenos marcianos que me sabiam disponível e preparado para a longa viagem. Só de ida, que o regresso não seria hipótese a considerar.
Nunca apareceram, os alienígenas ou os meus talentos inatos de explorador espacial. Mas não tive a coragem e a loucura necessárias para me catapultar da falésia rumo ao céu estrelado e ao sonho de recomeçar a existência num melhor ponto de partida. Optei pela resignação. Aprendi a arte de iluminar o vazio, sempre que surge uma verba para reparar o obsoleto mecanismo do facho que desvenda aos escassos habitantes de Vila Aparecida a realidade do seu cativeiro. Como o holofote sinistro de um campo de concentração, sem nada de bom para iluminar.

Destilo as amarguras de faroleiro frustrado na noites inúteis de vigília do vazio.
Todavia, e isto desconcerta-me, quando a máquina suspende os gemidos de angústia por lhe prolongarem a agonia, aproveito a folga forçada e a luz apagada para olhar em frente e na minha mente permitir que desfilem os contornos difusos, as sombras da minha ilusão de fugir um dia, escondidas por detrás da minha vontade rejeitada de viver num lugar triste mas ao qual sempre senti (e sei) realmente pertencer.

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