13
Jan06
ESPECORAÇÃO
shark
A lâmpada fundira precisamente quando reconheceu o vazio das ideias. E ele vivia mesmo ao lado da loja, paredes-meias, onde poderia adquirir uma nova. No dia seguinte, a partir das nove da manhã.
Restava-lhe ficar às escuras, apagado, semblante fechado no fim de um dia arrasador. Nem lhe ocorreu trocar a lâmpada fundida com a do hall de entrada ou a da dispensa, onde até havia duas.
Nem lhe ocorreu
Vegetava sem rumo no meio da intensa preguiça mental, esticado ao comprido no conforto de um descanso merecido, deitado de bruços na pasmaceira ideal. Sobrevivia a si próprio, esmagado por dentro pelo peso da frustração. Estúpido, pensava.
E era assim que se sentia, quando alguém lhe referia o cadáver adiado que o espelho nunca desmentiu. O mau aspecto era o seu, olheiras de buldogue e rugas sulcadas pela tristeza. Algerozes de fantasia para as lágrimas que não verteu.
Atordoado, jazia deitado no meio do pandemónio que um dia se instalou no sótão das suas memórias da dor. Até nem lhe doía, mas a confusão que lhe fazia a peça encenada deixava maltratada a sua versão do amor. A alternativa seria desligar a cabeça vazia e aproveitar aquele momento pacato de escuridão.
Inconsciência almofadada no remanso de uma estranha forma de solidão. Acompanhada à guitarra na música de fundo que a mente lhe trauteava aos berros sem misericórdia.
O pomo da discórdia no saco guardado no canto da sua atenção, abarrotado de comos e de porquês.
Discutia consigo mesmo nos meandros obscuros da inevitável especulação. A terrível conspiração do universo contra o reino da tanga imaginado pelos sonhadores. Um mundo de predadores em busca da próxima refeição, império faminto no nível mais baixo da cadeia alimentar. Só restava um, o resultado à vista da sociedade canibal. O instinto animal, em cada pessoa que o seu mundo privado lhe exibiu.
O mundo dos maus que o afligia porque zombava da utopia e exterminava quase à nascença as melhores intenções dos mais líricos ideais. Realismo imperioso de um colectivo ganancioso, empenhado em cingir o lirismo ao mínimo essencial. Apenas o bastante para cumprir o imperativo moral, matar o desejo com o bafo de um bocejo estampado nas bocas da corte real. Poesia de manjerico recitada ao serão.
O império do mal, em cada esquina, emboscado com desgostos para liquidar sem apelo a mais modesta ilusão.
Pessimista, a escuridão.
Mas a luz apagada era paz acrescentada ao armistício do seu conflito interior. Ruminava em silêncio a sua história de terror, exagerada à medida da vontade de se flagelar em função das suas culpas no cartório, as assumidas. Aposta no ilusório, perdida à partida quando o corcel alado entendeu coxear. E não voava afinal, como nos contos de fadas.
As histórias regurgitadas que cuspia eram feitas de gente vulgar, comuns mortais que não voavam também. Eram os filhos da mãe, a paranóia, amamentados pela imaginação em agonia na cabeça vazia que entretanto, felizmente, adormeceu.