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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

12
Jan06

COM FICÇÃO

shark
Vivia com a mentira agarrada à consciência, que a tinha em descanso, escapava por todos os meios ao confronto directo com quem podia, eventualmente, desmascarar o embuste que concebera. Desviava a atenção, perdia a compustura, irritava-se quando sentia a pressão do cerco que a verdade lhe impunha, fugia.

Depois mergulhava noutras preocupações, desaparecia. E assim escondia adiada a mentira agarrada como um esqueleto no armário das tralhas que preferia ignorar.
Disfarçava o desconforto quando o calendário se cumpria e as coisas que dizia não se enquadravam nos assuntos tabu. Voltava a desaparecer, inventava os motivos depois, sempre que as voltas da conversa descambavam nos subúrbios do seu maior temor. Talvez um grande amor, o dessa altura, ainda à experiência para adivinhar o que renderia outro capítulo que nasceria prenunciado no seu fim.

A mentira agarrada era apenas destinada a preservar-lhe a reputação ao seu olhar, o choque a evitar que afinal era sua a culpa da falência de cada uma das relações desperdiçadas num impulso infantil. Por isso a cultivava e assim adiava o momento de se sentir abaixo de cão. Não tinha a razão, mas invocava os pretextos que silenciavam a voz que a verdade gritaria.
Por isso ignorou, sem hesitar, o apelo final da ameaça que pressentia ao seu castelo de areia com janelas de cristal. Preferia mil vezes mentir, para assim poder fugir às consequências sobre si, as que acobardavam a sua confissão.
Ninguém lhe faria mal algum. Seria, em causa própria, juiz. E executaria a sentença, tipo dois em um.

Mas a mentira agarrada era ferida gangrenada e da boca já afloravam os sinais da infecção. Falava o coração. Consciência torturada, a verdade camuflada em paninhos quentes e falsas questões. Chacinava as ilusões para salvar o que lhe restava da dignidade que arrastava pela mentira convertida num lodaçal interior. Sacrificava até o amor, na ânsia de preservar a todo o custo uma imagem moldada em barro cru. Que desfalecia na falsidade do que dizia, cristalizada a fobia de se ver sob o holofote inquisitorial. Derretia sob o calor da sua transpiração intravenosa, oculta da vista, distante do coração. Na sua cabeça cansada pela carga dos juízos de valor que se transformavam em dor quando os apontava à sua pessoa.
Queria sentir-se especial. Não o conseguia e por isso fugia sob as mantas que cobriam as mazelas que a leviandade acarretou.

Mentia pela sua salvação, resgatava a convicção ao cadafalso da realidade exposta a nu. A carne que fraquejava e o instinto que preservava o respeito como um congelador. Para utilização futura, que o passado avariou e a verdade descongelaria. Certo dia surgiu liquefeita, toda espalhada pelo chão. À vista desarmada de quem procedeu à identificação posterior, uma história mal contada que o calor desconstruiu. De fio a pavio, o argumento desarticulado de um conto encantado onde a realeza era personagem de tablóide e acelerava a cada beijo a passada, rumo ao batráquio original.
Peças soltas encadeadas, reacções descontroladas, veio à tona a explicação. Como quem perde um irmão, sentou-se na areia dispersa pelo vento e chorou ignorando o frio. Mas aceitou o desafio.

Na noite da grande bronca, depois de uma conversa franca que tudo esclareceu, sentiu-se mais feliz. Tudo aquilo confessado, perdão para o pecado que lhe agigantava o nariz.
Despediu-se com ternura, arquivou a amargura e partiu em busca de outro beijo para quebrar a maldição.

Deu o salto do desejo para o nenúfar mais à mão.

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