É uma mulher bonita e dá largas, sempre que pode, à sua alegria reprimida. Quando ele não está por perto, consegue até sorrir.
Mas o seu olhar denunciava uma tristeza que me perturbou, logo na primeira vez que a vi. Incapaz de ficar indiferente, passei a observá-la com mais atenção, de forma discreta. E a ele também.
No olhos do cabrão li apenas o vazio, a expressão habitual no olhar dos cabrões. Não gostei. E logo adivinhei o cenário por detrás daquelas aparências insuspeitas aos olhos de quem não lhes prestava atenção.
Semanas mais tarde deparei-me com o rosto dela deformado, inchado pelo falso abcesso que as camadas de creme sobre o sangue pisado não conseguiam pintar.
Estava mais triste nesse dia, obrigada a trabalhar na ressaca de um terror, maquilhada à bruta para esconder na cara o que a alma não conseguia disfarçar. Pelos olhos, expressivos, transbordavam o medo, a amargura e a resignação muda de quem nada pode (consegue) contra a violência de um brutamontes possante e isento de emoções. O canalha ideal, perfeito para simbolizar o nojo que lhes dedico, aos canalhas capazes do pior. Da cobardia. Da infâmia.
Nada podia fazer, sabendo-os casados e não tendo hipótese de denunciar algo que não vi e ninguém até hoje me testemunhou. Não podia agir com base em especulações.
Engoli a revolta e passei a dar menos atenção à mulher bonita que eu pressentia estar a sofrer. Até um dia, pouco tempo atrás.
De manga curta e braços cruzados, distraída, saltou-me à vista o que me pareceu uma tatuagem, um pouco acima da dobra do cotovelo, na face lateral de um dos braços dela.
E era, de facto, disso que se tratava.
Um clássico. Um coração apaixonado, atravessado pela seta de cupido. E dentro do coração um nome de homem.
Essa era a tatuagem original, como a reconstruí mentalmente ao longo dos segundos de que dispus para a observar.
Agora, uma horrível cicatriz substituía a seta, de alto a baixo, cruzada na zona do nome que se pretendeu apagar. Mas sobraram a primeira e a última letra do nome próprio desse amor eterno que algures acabou. Não é o nome do vilão.
Desconheço, por ora, a verdade por detrás destes preocupantes indicadores. Mas só me consigo imaginar olhá-lo com desdém, ao desafio, sempre que o destino o atravessar no meu caminho.
Tenho fé que algum dia ele irá perguntar-me porquê.