Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

09
Mai05

RESERVA DE PROPRIEDADE

shark
Cat_-_Cartoon_02.jpg
Travaram os dois a fundo, evitando à justa a colisão. Saíram dos veículos, possessos, convencidos das suas razões. Haviam descoberto em simultâneo aquele precioso lugar vago no parqueamento, ambos ligaram o pisca e iniciaram a aproximação. Exactamente ao mesmo tempo, triste coincidência, e nenhum abdicaria do seu inegável direito. Envolveram-se em acesa discussão, berraram.
Os dois jovens, classe média abastada e formação superior, não chegaram a um consenso e desataram ao murro. Andaram naquilo um bocado, ninguém se metia que o problema não era seu. Até que um perdeu a luta. E não gostou.
Correu para o porta-bagagens. Quando o outro lá chegou deu-lhe com a chave de rodas numa têmpora e ele tombou. Deitou as mãos à cabeça, o adversário morreu.
Enquanto a polícia o prendia, ensanguentado e em choque, outro cidadão estacionou a sua viatura, satisfeito, naquele oportuno lugar vazio.
04
Mai05

A POSTA NA BOA ONDA

shark
quartosete.jpg
Há espaços que se agarram a nós como sanguessugas. São parasitas das emoções que nos invadem quando os lembramos, colam-se às memórias como adereços, como cenários do palco onde a nossa vida acontece e os aplausos que ecoam são os sons dos momentos especiais que associamos a cada lugar e às pessoas que a eles nos ligaram pela sua presença num lapso de tempo que recordamos feliz.

São coisas de pedra, sem vida própria, a que nem atribuímos qualquer importância quando as olhamos sem paixão. Nem sabemos que existem até ao dia em que servem de referência para o que de importante ali nos aconteceu. E sabemos que deixarão de existir um dia, convertidos em ruínas, entulho e pó, como nós e as recordações que acarinhamos. Marcos da nossa pequena história pessoal, insignificantes aos olhos de quem não a partilhou. Meras fachadas.

E no entanto, tão intensas as alegrias e as dores, as tristezas e os amores, as esperanças e as desilusões. Tanto de nosso e de quem nos partilhou em dado instante, amigo ou amante, embutido nas paredes onde se acotovelam as imagens sobrepostas das experiências de quem por lá passou antes de nós. Ou depois.
Tanto de tudo. Tanto de bom.

Inexpressivos, os espaços, numa fotografia apreciada por quem nunca os conheceu. Como a que acima vos exibo, branco e amarelo, mais o azul acima, cores que o sol pinta com reflexos de luz. Instantâneo de uma realidade da qual apenas uns quantos (re)conhecem o tom. Mensagem indecifrável, segredo. Que vos conto sem fornecer pormenores, apenas com a garantia de que o espaço retratado faz parte de mim e de que assim vos ofereço outro retalho do homem que sou. Numa ilustração de uma fachada que afinal pode nem vos dizer nada, se nada vos liga aos contornos que mal esbocei.
Mas que diz tudo a quem justificou, afinal, a minha vontade de estar ali, todos os dias, na lembrança do que passou e na esperança do que ainda está por vir.

São coisas de pedra que construímos na cabeça para nos abrigar o coração.
03
Mai05

ABERTURA FÁCIL

shark
abertura fácil2.gif
A porta do armário não abriu. Nem a murro. Decidiu então sair sem se barbear. Num Domingo, acabaria por ser questão de pouca monta. Mas acabou por lhe estragar o bom humor com que acordara.

Quase correu para o carro quando se apercebeu da bizarra criatura que se aproximava. Premiu ansiosamente o comando do fecho centralizado, mas nada aconteceu. A pilha acabara ali os seus dias. Teve de aturar a habitual ladainha acerca de factos sobrenaturais e charlatanices diversas que o vizinho de cima, o "bruxo", despejava sobre quem se atravessava no seu caminho. Nessa manhã, o tema incidia sobre sinais premonitórios.
Nervoso, ia tentando abrir a porta da viatura com a chave, enquanto balbuciava desculpas de ocasião e "urgentíssimos afazeres". Só queria livrar-se do maluco. Acabou por partir a chave. O carro ficaria fechado, nessa linda manhã de Primavera.

Meteu-se ao caminho, cuspindo impropérios. Seria um esticão, feito a pé, mas nada o faria perder a sessão semanal do seu desporto favorito. Quando virou, na outra ponta da rua, ouvia ainda o profeta do apocalipse, castigando sem piedade o paciente contabilista do sétimo esquerdo.

A caminhada acalmou-o. Respirou fundo e apreciou a paz que envolvia o bairro. Aqui e além, crianças brincavam felizes. Reparou num menino que tentava sem sucesso despir o blusão. Abordou-o, confiante, para a boa acção do dia. Bem se esforçou, mas o fecho polilon, encravado, não abriu. Ficou, figura de parvo, com a patilha partida entre os dedos. No resto do caminho, o choro convulsivo do petiz martelou-lhe a consciência.

O calor apertava. Decidiu matar a sede na máquina da esquina, com uma lata de sumo fresquinho. Partiu uma unha, somou mais uma patilha perdida entre mãos. E projectou contra a vedação de arame uma lata por abrir.
Rosnou cumprimentos quando entrou no vestiário. Bufava, possesso. Sedento, nem assim se atreveu a tentar abrir a torneira, certo de mais um fiasco nesse dia de cão. Pegou no equipamento e seguiu o instrutor, sem proferir um som. A cada passo, foi concluindo que azar tem limites e auto-injectou-se de precioso optimismo.

O sorriso deliciado pelo vento frio no rosto morreu-lhe nos lábios. Porque diabo se havia de lembrar do "bruxo" num momento daqueles, interrogou-se, enquanto enfiava o indicador na anilha de abertura do pára-quedas...

Pág. 4/4

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Arquivo

    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2004
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

Já lá estão?

Berço de Ouro

BERÇO DE OURO