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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

14
Abr05

A POSTA CIUMENTA

shark
Ninguém pode afirmar se tem origem cultural ou visceral. E pode efectivamente levar uma pessoa à loucura, como o demonstram os inúmeros crimes passionais protagonizados por amantes em fúria.
O ciúme, para uns um indicador de paixão e para outros uma manifestação grosseira do sentimento de posse, está inevitavelmente ligado ao amor na reputação e ao horror em algumas das suas piores consequências. É um sentimento extremado, capaz de suscitar reacções imprevisíveis. E as mais diversas opiniões.

Poucos conseguem alhear-se à perturbação originada pela ciumeira. Cada um experimenta-a à sua maneira, de acordo com a sua sensibilidade e com a intensidade da paixão que a alimenta. Há quem chore, quem grite e quem emudeça. Há quem se revolte, quem se sinta culpado e quem baixe os braços em dolorosa resignação. Há de tudo, mas sempre com a tónica assente no sofrimento, na raiva e/ou na desilusão.
Embora seja aceite como inevitável em qualquer tipo de relação amorosa, a carga pejorativa que lhe está associada deriva de um facto muito simples: o ciúme anda de braço dado com o espectro da traição.

Temos ciúmes quando nos confrontamos com a possibilidade (real ou fictícia) de alguém partilhar o afecto de uma pessoa nossa amada. A partir daí é possível todo o tipo de cenário ou conjectura. E as interrogações multiplicam-se, quanto mais avançamos na análise deste tema.
Porque sentimos ciúme? Pelo instinto de posse ou pelo apego à monogamia que a nossa educação incute? Pelo amor a outra pessoa ou a nós próprios? É uma derivação do egoísmo ou uma adoração descontrolada? A minha opinião não oferece respostas definitivas e por isso gostava de conhecer a vossa, ainda que seja ambicioso esperar obtê-las.

No entanto, a troca de impressões acerca de um tema tão relevante na nossa estrutura emocional nunca me pareceu supérflua. Até porque existem questões directamente ligadas ao ciúme que não se esgotam no espaço restrito de uma posta. Questões como a infidelidade, a confiança e as repercussões do ciúme no contexto de uma relação. Como o ciúme ser motivo bastante para separar em definitivo duas pessoas que, em muitos casos, nem deixam de se amar. Apenas se afastam pela violação dos princípios.

Eu entendo o ciúme como um perigo latente que pende sobre cada cabeça numa relação. Uma guilhotina potencial para a mais sólida das ligações. Não é um mal menor nem me parece um mal necessário. É uma manifestação de insegurança, uma expressão insana da nossa incapacidade de abdicar do controlo das emoções de quem sentimos como nosso. Mas que afinal nunca o é. E só opino para fornecer um ponto de partida para as vossas intervenções, caso optem por alimentar na sala abaixo um papo acerca deste assunto tão melindroso e, contudo, descaradamente apelativo para quem gosta de discutir o amor. Sob todas as perspectivas.
14
Abr05

PASSADA A BORRASCA...

shark
pinkfloyd1.jpg
...Estou a usufruir de um nice day at the office. E enquanto trabalho, do meu computador saem sons de outro planeta. "Us and Them", nós e os outros, com o vozeirão do David Gilmour a encher-me a sala de pura magia.
É impressionante o efeito que estes gajos exercem sobre mim, desde puto. Não encontro paralelo, excepto em alguns rasgos de génio pontuais de outros protagonistas. Sou mesmo um doente, um viciado na sonoridade e nas palavras destes britânicos que têm moldado a minha forma de estar na vida (a par com The Doors, claro).
Acho que se trata de um amor eterno. Se morrer de velho, é bem possível que esteja a ouvi-los na altura...
Desejo-vos um dia muito agradável e, se puderem, recomendo-vos o The Dark Side Of The Moon como banda sonora. É uma receita ganhadora.
13
Abr05

ERRO DE PALMATÓRIA

shark
grafiti1.jpg
Tinha nove anos de idade quando fugi de casa pela primeira vez. Saturado do clima que por lá se respirava e contrariado pela imposição da catequese (absurda, desde o dia em que o padre da igreja da freguesia me expulsou liminarmente do templo sagrado – apenas porque referi em voz alta que não sabia o que estava ali a fazer), planeei com cuidado essa manifestação de rebeldia.
O meu grande amigo dessa altura alinhou e até partilhou comigo a elaboração do plano que visava afastar-nos das repercussões da suspensão de três dias, ocorrida semanas antes, e que uniu os nossos nomes no “quadro negro” do externato em que frequentávamos o ensino primário.
Em vez da catequese, metemo-nos ao caminho sem dinheiro e apenas com o resto do almoço nas marmitas para nos sustentar ao longo da aventura.

A única regra do plano era não perdermos o rasto à linha do comboio, a fim de sabermos sempre o caminho de volta caso algum de nós se arrependesse a meio da nossa jornada de luta. E assim fizemos, correndo riscos sérios que só por mero acaso não resultaram em tragédia para qualquer um de nós. Foram diversas as ocasiões em que nos safámos à justa de um desfecho menos bom.
Depois de esgotados os mantimentos, cansados pelos quilómetros percorridos a pé e já fartos de comer fruta roubada nas mercearias com que nos cruzámos, a nossa resistência acabaria por enfraquecer. Discutido o problema e medidos os prós e os contras, decidimos regressar depois de congeminada uma desculpa infantil para o nosso desaparecimento.

Foi o meu pai que nos encontrou, já perto da escola, numa noite fria em que a vizinhança percorria por turnos as ruas em busca das duas crianças que se presumiam raptadas ou pior. Os pais do meu amigo não participariam nessa iniciativa. Estavam em casa quando o meu pai lhes entregou o rapaz e recordo a falta de entusiasmo com que receberam de volta o filho cujo paradeiro desconheciam. A queixa à polícia parecia-lhes transtorno bastante com a situação.

Consegui a custo entender-me com a família, insistindo na valia das minhas razões. A catequese deixou nesse dia de constituir obrigação e ficou encerrado o mal-estar pela vergonha da invulgar (e excessiva) punição que me havia sido dada na escola.
Mas com o meu amigo as coisas não se passariam da mesma forma. Até ao final do ano lectivo não voltaria a frequentar o externato, os pais decidiram mudar de casa e não voltaria a vê-lo até que uma extraordinária coincidência nos reuniu, anos mais tarde.

Reconheci-o entre a multidão que atafulhava o autocarro da carreira 33, dias depois de festejar os dezassete anos de idade. Estava diferente, o meu amigo, sobretudo no olhar.
Manifestei a minha alegria por reencontrá-lo mas ele não correspondeu. Nem um sorriso decente consegui arrancar-lhe, tal era a tristeza que parecia agarrada ao seu semblante como uma máscara de ferro coberta das cicatrizes de um período negro que atravessou.
Resumiu-me em poucas palavras a sua versão do que vivera na sequência da situação que nos separou ao longo desses anos.
Os pais, classe média alta e formação superior, confrontados com a maçada de criar um filho mais irrequieto do que a maioria nem hesitariam em enfiá-lo sem apelo num colégio interno, algo que inspirava terror a qualquer puto dessa época, e de onde acabaria por fugir para uma existência marcada pela marginalidade.
Deixou-se agarrar pela heroína e percorria as vielas do costume na espiral da degradação, as que a vida oferece a quem se vê só e sem qualquer esperança no futuro.

Ficou-me na memória este exemplo flagrante de como uma mesma situação pode produzir efeitos tão distintos no destino de cada um de nós. E no caso concreto, a diferença resultaria afinal das escolhas dos pais quando lhes competiu tomarem decisões e não das dissonâncias significativas nas personalidades ou nos comportamentos dos filhos em questão.
Ficou-me na consciência a noção da responsabilidade tremenda que assenta nos ombros de quem opta por ser mãe ou pai. Não há margem de manobra para a estupidez.
12
Abr05

O TAMANHO DA TESTA

shark
Como nasce a inveja.jpg
Conforme prometido, vou abordar um dos temas mais melindrosos para qualquer macho da espécie que tenha ouvido falar do John Holmes (1). Sim, o tamanho conta. Pelo menos conta nas preocupações de muitos dos meus companheiros de classe. E nas da outra classe também (embora sob diferente perspectiva).
Eu já me assumi mediano e tenho por isso uma posição confortável na matéria. De resto, aprendi cedo que os centímetros de pila a mais ou a menos podem constituir uma questão secundária quando compensados na dimensão da testa. No interior da nossa tola, na forma como encaramos a nossa vida sexual, residem os argumentos prioritários.
Mas isto é um gajo a falar e admito que esta minha interpretação possa ser demasiado subjectiva.

A questão do tamanho, para além de ser um viveiro de excelentes anedotas, é um foco permanente de tensão mal disfarçada. Para qualquer homem traído, o embaraço de concluir que a "sua" companheira o preteriu por causa do mastro do rival é um mal menor perante a mínima suspeita acerca do seu desempenho na cama. É que as pilas sairem grandes ou pequenas constitui um capricho aleatório da mãe natureza e quanto a isso, nada a fazer (2). Mas a falta de entusiasmo para satisfazer a parceira já não se pode descartar com a mesma paz de espírito. Por isso mesmo, tendo a concluir que uma explicação em centímetros é preferível a uma alternativa em minutos...
O nervoso miudinho assoma a mente de qualquer um de nós quando, no urinol, ficamos com a impressão de que o bacano do lado nos controla o penduricalho pela surra. Quero acreditar que essa preocupação está relacionada com o pavor aos olhares gay (embora me custe a crer que um homossexual arrisque ou considere sequer tal hipótese). Porém, existe a remota possibilidade de estar em causa o facto de assim, a fazermos chichi, desarmados da nossa desmesurada erecção, soarmos minúsculos com aquela coisa flácida entre mãos. São questões que me ultrapassam.

Aliás, cada um reage à sua maneira quando o tema aflora o seu pensamento ou (raramente) as conversas em que participa. Quando se trata de um grupo estritamente masculino, só através do humor o assunto pode vir à baila (nunca um homem coloca a outros essa dúvida existencial tabu). Em grupos mistos acaba por dar na galhofa (a única saída airosa para o desconforto que se instala nos presentes com estatuto de filho varão). Nos grupos delas não faço ideia de como e se a conversa se desenrola. Intuo que prefiro nem saber.

Naturalmente, compete às mulheres (cuja posição me tem soado algo ambígua nas conversas que mantive a propósito) definir a relevância da fita métrica nas suas opções ou preferências. Mas julgo que nós homens deveríamos confrontar-nos com os nossos medos nessa questão, expurgar receios infundados que estão na origem de tantas rugas de expressão.
Pela parte que me toca, nunca ocorreria justificar um resultado pouco satisfatório com base em tal argumento. Seria uma desculpa de mau pagador. E custa-me a acreditar, excepto nos casos dos meus colegas a quem o destino se exibiu parco em demasia, que a verdade dos factos passe por aí. Isto não implica, claro, que não seja tão normal existirem mulheres adeptas de pilas de palmo e meio como homens desvairados por mamas versão Dolly Parton ou Fáfá de Belém.

Outra verdade insofismável é de que mais vale um pequenino mas trabalhador do que um adamastor molengão. Esta é pelo menos a teoria que mais nos conforta, quando descobrimos algures na vida, com enorme desgosto, que entre a nossa e a de uns quantos há uma confrangedora diferença. Quando somos muito jovens, essa ameaça paira-nos sobre a crista como um imenso papão (3). Pode até inibir-nos, se sabemos que fulana já esteve com um indivíduo mais velho ou com o tipo de quem se diz ser parente daquele deputado castiço que fez escola. "E se ela acha o meu coiso minorca e desata-se a rir em plena função"? É assustador, naquela fase decisiva de afirmação pessoal. Depois a gente cresce e os fantasmas desaparecem.
Não é?

(1) Actor de filmes pornográficos, trata-se de um homem que se notabilizou no género sem encontrar rival à altura. Em comprimento, para ser mais exacto...

(2) Isto se não acreditarmos nas inúmeras e diversificadas propostas que o spam nos faculta. Ou numas máquinas de sucção(?) que alegadamente vão esticando o dito cujo se nos aplicarmos com dedicação. Enlarge your penis e afins.

(3) Vinte centímetros ou mais.
09
Abr05

MOINHOS DE TEMPO

shark
Casaumida.jpg
O velho Joaquim Merceeiro encostou-se ao muro branco diante do seu estabelecimento. Tinha vista para a praça central, que fôra a única nos dias em que a jovem cidade era aldeia e ninguém lhe fazia concorrência ao negócio num raio de dezenas de quilómetros.
Agora, era um burburinho todo o dia. Gente para lá, gente para cá, gente sem outro sítio para onde ir. Reuniam-se ali aos magotes, como os pombos, e o velho Joaquim gostava de ficar ali a vê-los correrem a vida num virote enquanto a povoação crescia em redor daquela praça.
Os dias bons para o comércio, recordava, costumavam ser dias assim.

Com a aldeia em plena festa, honra a Nossa Senhora das Misericórdias Divinas, população de todo o concelho ali congregada para generosa festarola. E era o Joaquim, pois claro, quem fornecia os enchidos e quase tudo quanto se comia nessas ocasiões festivas. Um festim para a caixa registadora, de manípulos cromados e manivela a rigor, que insistia manter em destaque, troféu, como a mais lustrosa manifestação da sua vontade férrea de parar o tempo no interior da merceeria.
Até no exterior conseguiria esse milagre, manter uma velha casa térrea em pedra, entalada, teimosa e patética, entre os seis pisos de dois expoentes da mais desastrada arquitectura paisagística. E em volta da praça, todos os edifícios cresciam em altura, modernos, escondiam ao Joaquim as hortas que dantes conseguia ver e agora nem existiam, convertidas em quarteirões carregados de clientela potencial.

Assim era, no princípio, quando a vila em expansão começara a acolher as primeiras evidências do êxodo rural. Chegavam os rapazolas primeiro, a apalparem terreno. Vagueavam pela praça em busca de organização para as ideias até surgir do nada uma entidade empregadora. Marçanos, serventes e aprendizes de qualquer coisa, governavam a vida e ainda sobrava o bastante para atenuarem as privações dos que ficavam na terra.
Depois, apareciam os irmãos e irmãs, primos e amigos, quartos alugados e gastos controlados ao tostão.
Dias dourados para a Merceeria Victória, o ponto de referência da vila em géneros alimentares e outras conveniências, como dizia na tabuleta carcomida que prendera por arames num candeeiro da rua, mais de cinquenta anos atrás. Publicidade que bastava para acabar com as veleidades dos merceeiros arrivistas, amadores. Vinham ao cheiro, dois ou três, instalavam chafaricas num canto discreto. Depois, baixavam os preços e obrigavam o senhor Joaquim a acompanhar essa incompreensível tendência para sacrificar as margens de lucro. Uma estupidez, coisa de gaiatos. Mas seria a única vez que o Joaquim aceitaria publicitar a casa que, afirmava, se impunha por si, que a antiguidade é um posto. E a tabuleta ficaria referenciada como "indicador de localização" nos registos autárquicos da época, o que inviabilizaria mais tarde todas as iniciativas do Município para a retirarem do local. Nem o candeeiro Joaquim permitiria que substituíssem, o único desse modelo que restaria na praça, incólume aos progressos fantásticos da iluminação urbana que lhe tentaram impingir.

Era teimoso, o Joaquim. Agarrava-se às coisas de que gostava com a firmeza de um mexilhão, cristalizava a essência dos momentos em que se sentia mais feliz, tentava perpetuar nos objectos e na postura a vida de que gostava e não admitia a evolução como pretexto para a mais ligeira mexida no seu mundo especial.
E a merceeria era a sua cara chapada, antiquada nos moldes, imutável na decoração. Durante o dia, o merceeiro vestia a farda, uma velha bata azul desbotada. E ao domingo, quando saía, só vestia a roupa à medida que lhe fazia o seu amigo Toino, proprietário da alfaiataria. Sempre o mesmo conjunto, calça, camisa, colete e casaco. E um chapéu com dignidade, como ele sempre referia.
Sempre a mesma encomenda, na forma e na cor. Cinzentão.

Defronte da fachada, uma arrastadeira orgulhosa definhava por falta de peças e corrosão natural. O Joaquim, velhote, desistira nos anos oitenta da respectiva manutenção. Nem assim permitiu que lhe sugerissem a remoção do destroço para uma garagem municipal, gratuita, à sua disposição. Aquela relíquia, como as outras de que recusava abdicar, não era apenas um objecto, fazia parte do Joaquim. Foram deixando ficar...
E ele insistia em abrir a porta todos os dias, às oito e cinquenta e nove, para honrar a tradição. Ninguém abria mais cedo do que o senhor Joaquim, fanático cultivador da pontualidade, um dos critérios que lhe haviam transmitido como sagrados para o comerciante da escola clássica.

Também as manhas, próprias do ofício, indispensáveis para rentabilizar o negócio, eram fruto dessa transmissão de saber precioso que os mais novos insistiam em ignorar. A vizinhança não tardaria a notar as diferenças no peso de um quilo nos embrulhos da Victória, relativamente às restantes. Problema das balanças, esses modelos modernos, descalibram com o peso de um reles melão. Muito sensíveis e imprecisas, argumentava ainda, exibindo nas medidas de lata as marcas oficiais da verificação anual. Para inglês ver, que a verificação morria esquecida nas traseiras, em repasto com tudo de bom para gáudio dos fiscais.
Dava a volta a tudo, o Joaquim. Ultrapassara a perda da Donzília, sua mulher e infatigável trabalhadora, cheia de paciência para o aturar. A que faltaria aos filhos, mais tarde, quando mudaram para longe e raramente voltariam para o visitar. Também com isso ele podia.

Mas o tempo avançava e enfraquecia a resistência do velho mercador. À sua tenacidade em permanente desgaste correspondiam investidas cada vez mais poderosas do progresso que o esmagava, de mansinho, com armas desiguais.
Para a Merceeria Victória, estava decretado um fim. Do lado oposto da praça, os tapumes de uma obra imponente anunciavam aos pedestres a inauguração próxima do primeiro hipermercado da cidade.
O tempo galgava as barreiras com o vigor de uma enxurrada, impunha regras suas a quantas lhe tentavam opôr. Farto de esperar, o tempo enlouquecia e assumia uma personalidade diferente, muito arrogante, mais fria. Mas o velho Joaquim, debruçado sobre o muro branco, já conhecia nome e rosto do vilão que desdenhara acompanhar. Chamavam-lhe progresso. Não o temia.
Teimoso, desviou o olhar para a tabuleta empalecida e cogitou. Minutos mais tarde, no cimo do escadote que encostara no candeeiro de estimação, Joaquim Merceeiro lançou à cidade um sorriso de desafio. E mergulhou na lata de tinta esmaltada, referência 304, tom forte e garrido, a sua varinha de condão particular.
Ninguém o convenceria da futilidade de tal resistência, tamanha se revelava a sua fé.
A magia acontecia colorida na paleta dos sonhos daquele velho lutador. E no reflexo do sol que a tabuleta renovada voltou a espalhar pela praça, em borrifos de orgulho, todos os dias, a meio da manhã.
07
Abr05

RESERVA MORAL

shark
velocidadecontrol.jpg
Era bonita, inteligente e sensual. Uma combinação irresistível. Apaixonei-me e consegui conquistá-la. Foi uma surpresa para todos quantos nos conheciam.
Eu, estarola, andava numa fase destravada e a sorte sorria-me nos assuntos do amor, ninguém me agarrava. Ela, católica devota e virgem até às orelhas, reprimia as tentações da carne com uma tenacidade ímpar. Uma combinação impossível. Mas aconteceu, num serão em que lhe pedi licença para a beijar nos lábios e ela deixou. Depois de tal intimidade, nem se punha a hipótese de não lhe propor namoro. E eu, claro, propus.

Alguns meses mais tarde, era notório o desgaste da nossa relação amorosa. Ela sonhava-se virgem até ao casamento e eu não fazia tenção de casar nas décadas mais próximas. O conflito de interesses nessa matéria começou a gerar algum desconforto e eu gostava demasiado dela para a encurralar. Ou a seduzia o bastante para a fazer abdicar dos princípios que defendia, mandando às urtigas o voto de castidade, ou tinha que acabar com a relação antes que se tornasse inevitável ir em busca de alternativas pela surra. Mas era de uma amiga que se tratava, a primeira hipótese não se colocava.

Foi um momento complicado para ambos, como sempre acontece na sequência do final prematuro de qualquer história de amor.
Eu sentia-me desiludido e frustrado. Dois meses depois ainda não conseguira ultrapassar a situação e permanecia-lhe "fiel", apesar de livre como um passarinho. Acabei por voltar à carga, embrulhámo-nos durante umas horas e quando já a tinha seminua sobre uma cama a consciência traiu-me. Perguntei-lhe olhos nos olhos se tinha noção do que estava prestes a fazer e se avaliara bem as respectivas consequências, considerando que a minha paixão por ela não bastava para desistir dos meus ideais (tal como não queria destruir os dela). Disse-me que não. E eu abracei-a, acariciei-lhe o cabelo durante um bom bocado, conversámos um pouco e depois saí.

Quinze dias depois, nem mais um, encontrei a irmã dela. Perguntei-lhe como estava a mana e ela esclareceu-me, indignada.
Andava metida com um crápula, um gajo sem eira nem beira que, entre outras reviravoltas no destino, a possuiu.
Aquilo que negara meses a fio a um homem que a mimava entregaria de bandeja, em duas semanas, a um sabujo mau como as cobras...
Duraria mais um mês, essa relação com contornos bastante desagradáveis que envolveram a família da moça e lhe arruinaram a reputação ao ponto de ela ir viver para outra cidade, incapaz de lidar com a pressão.
Ainda hoje não sei o que me doeu mais em toda esta cena. Gosto de acreditar, em nome do romance, que doeu mais o dano irreversível que o nosso futuro a dois sofreu. Contudo, e vendo as coisas a frio, soa-me legítimo assumir que também fiquei com uma grande tola e ferido no meu orgulho machão.

Desde esse episódio ganhei a certeza de que nunca entenderei o complicado processo de raciocínio das mulheres. Mas apesar de escaldado neste exemplo concreto que convosco partilho, sei que se a vida me confrontar com um dilema idêntico reagirei da mesmíssima maneira. E isso não faz sentido algum, pelo que também me vejo forçado a reconhecer que posso ser um tipo porreiro mas parte dessa boa onda pode residir no facto de eu ser afinal um ganda otário, considerando o desfecho desta situação. Tranquilo na consciência, mas sem explicação plausível para esta estranha tendência para o papel mais absurdo que um homem pode vestir na qualidade de amante potencial.
Lembram-se da figura do batedor? Aqueles índios renegados que se alistavam no exército americano, farejavam as pistas, descobriam o melhor caminho, garantiam a segurança dos brancos e depois afastavam-se para um canto e ficavam a assistir às gloriosas conquistas e vitórias dos canalhas mais espertos e menos escrupulosos que acabavam por os lixar no fim?
Eu explico-vos daqui a um bocado, assim que a fogueira estiver no ponto para vos enviar os sinais de fumo...
05
Abr05

O HOMEM QUE SÓ VI UMA VEZ

shark
silhueta2.jpg
O meu avô, como tantos homens da sua geração, constituiu duas famílias. Uma legal, institucionalizada. A outra não.
Tinha mulher e um filho quando, a centenas de quilómetros, conheceu a que viria a tornar-se na minha avó. Apaixonou-se perdidamente. Muito se esforçou para lhe arrancar um beijo, mas depois de o conseguir as coisas complicaram-se e muito. O primeiro filho ilegítimo surgiria e outros dois se seguiriam.
Os anos passaram e o meu avô não reunia coragem para tomar uma decisão. Acabaria por tomá-la, optando por se pirar para África, de onde regressaria, depois de amealhar e de estoirar uma apreciável fortuna em extravagâncias, à primeira família que deixara vários anos antes. Para trás, na capital, deixou uma mulher solteira com três bastardos nos braços para criar.

Só conheci o meu avô na adolescência. Recusei-me a dirigir-lhe a palavra durante algum tempo, pelo desprezo que sempre lhe dedicara pela sua deserção. Mas acabámos por trocar algumas palavras, que ele forçou e eu percebi porquê quando o vi morrer pouco depois. Ele já sabia e por isso regressara. Para aplicar a única justiça que o destino lhe permitia no escasso tempo que lhe restava nessa altura, para dar o nome aos filhos que abandonou. E eles aceitaram, para se livrarem do estigma do filho de pai incógnito que os feria no orgulho como uma maldição. Reconciliaram-se. Faltava eu, o neto rebelde que lhe rejeitou sem apelo a oferta de mais um apelido. E ele deitou-se à tarefa, conversou comigo e ofereceu-me as explicações que exigi. Falou-me de amores que cegam, de deveres que condicionam. Assumiu perante mim o arrependimento possível mas fez o que pôde para me tornar explícitas as suas razões.
Depois afastou-se outra vez e não voltaria a vê-lo até ao seu fim, dois ou três meses depois.

O que me fez acreditar na sinceridade daquele ancião foi a chispa no olhar, sempre que falava da minha avó e do amor proibido que ambos viveram enquanto durou. Percebi nesse instante que era mesmo de amor que se tratava, uma paixão impossível de reprimir que o enlouqueceu. Jogava certo com a versão da minha avó, que nunca se mostrou arrependida de se entregar ao homem mais incrível que afirmava ter conhecido, mesmo tendo em conta aquilo porque passou. Nunca deixaram de se amar. Juntando a versão dos dois, serena e conciliatória, tudo mudou de figura.
E quando, por uma vez, o meu avô viu reunidos os filhos e os netos que deixava para o perpetuarem, vi no seu sorriso que, tal como eu e toda a família, também ele à sua maneira conseguiu encontrar uma forma de perdão para si próprio no saldo final daquela salganhada.

Continua difícil de entender o seu acto de aparente cobardia, à luz de diversas exibições de coragem que protagonizou ao longo da vida e me foram relatadas. Mas o tempo ensinou-me a entender-lhe a força das emoções que o guiaram por uma vida tão irregular. Movia-o a paixão arrebatada, a reacção impulsiva e pouco reflectida que, diz quem melhor o conheceu, herdei de entre muitos traços da personalidade mais a expressão do olhar daquele homem que vi apenas uma vez.

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