02
Mar05
A CRUZ DO JOÃO
shark
No dia em que o João descobriu, todos perceberam que aquela seria uma cruz para carregar ao longo de toda a sua vida. Anos antes tinha vivido uma tórrida aventura com uma mulher estrangeira, um engate de férias que acabou com a partida do João para o país da sua paixão assolapada daquela altura. Um dia o João, que pouco conseguia falar ou perceber da língua desse país onde agora vivia, percebeu que a família da rapariga lhe estava a marcar o casamento à revelia. Possesso e nada entusiasmado com a ideia zarparia de regresso no dia que se seguiu.
Agora, cerca de cinco anos mais tarde, uma amiga que conhecia o engate de férias do João contava-lhe que a moça dera à luz um menino, cerca de sete meses depois do regresso do rapaz. Recuando no tempo, não foi difícil ao João somar dois mais dois.
Mas ela disse-me que estava sempre a ir ao ginecologista por causa de um tampão de que se esqueceu. Pois, mas o João, que ia com ela para quase todo o lado, nunca assistira a qualquer das consultas. E descobriu à bruta porque lhe andavam a combinar o matrimónio.
Durante semanas, o João consumiu-se em torno do assunto. As últimas cartas que recebera da rapariga, onde lhe rogava as pragas do Egipto e o informava da fogueira que fizera com os pertences deixados para trás na fuga, não lhe deixavam dúvidas quanto à reacção que poderia esperar. Por outro lado, ela pertencia a uma família abastada e poderosa, era alguns anos mais velha do que o João e concluíra uma licenciatura no ano em que ele havia partido, estando já a ocupar um cargo importante e bem remunerado. Ele ainda nem frequentava o ensino superior quando a vida lhe revelou aquela armadilha. E mais, ela providenciara sem demora um pai para a criança, com quem casara e ainda vivia.
O João chegaria a ir ao país em causa para poder ver ao longe o filho de que as circunstâncias o haviam privado. Mas nunca tentaria aproximar-se daquela família na qual só poderia interferir de forma negativa. Engoliu em seco a partida do destino e encaixou no peito a dor que aquela revelação lhe passaria a provocar, todos os dias, anos a fio e já lá vão quase vinte.
Sempre que me confronto com o João fico com a sensação de reconhecer essa mágoa mal disfarçada no seu olhar.