As palavras rompiam caminho por entre o canavial, guiadas pelo vento e pela vontade de alguém se fazer ouvir. No interior da cabana de madeira, casinha de bonecas, um velho declamava poesia. Assim espantava a solidão e combatia a loucura que tantas vezes o perseguia, nos sonhos acordados pelo frio da madrugada e pela dor de uma saudade que o atormentava. Chorava e ria, gritava as emoções de um estranho feito amigo, de um poeta desconhecido. Gostava de ler o amor.
Quem o ouvia era o cão, a única companhia que restava, fiel. Focinho esparramado no soalho, orelhas levantadas em sinal de atenção. Nunca se distraía, o rafeiro, convertido à poesia na voz do dono, às palavras que entendia pelo tom. Era o som que o fascinava, uivava de prazer. Uma vez por outra, adormecia. Para acordar de seguida, com um berro que anunciava a chegada de um ponto final. Parágrafo.
Alguns minutos de pausa, silêncio relativo, um cigarro à janela, mais um copo de três. Tinto.
Um livro inteiro declamado até quase ao nascer do sol que o afugentava para debaixo dos lençóis, para a escuridão. Recusava o usufruto da luz. Em memória da companheira que tanta falta lhe fazia e cujo rosto o astro-rei já não podia iluminar, fugia. E recitava as leituras que ela lhe oferecera, uma vida inteira de declamação que o velho substituía, rasgando o silêncio nocturno com estrofes sem as quais não conseguia sobreviver. Gritava o que lia, mas a única voz que ouvia era a dela. Gravada como banda sonora para os livros que lhe deixara, uma herança forçada.
O rio que corria próximo, nem trinta metros adiante, beijava a margem que o acolhia e o guiava, que delimitava o espaço das águas cristalinas, o melhor caminho para a descida ininterrupta até ao reencontro na foz com a força selvagem de um oceano sem fim. Eterno romance que a natureza recriava, a cada instante, nas simbioses que fomentava e no cariz perpétuo das interligações, uniões que lhe sublimavam a beleza e evidenciavam uma busca incessante de perfeição. Como eram perfeitos esses momentos de serena contemplação da vida que acontecia, que fervilhava naquele rio, sentados na margem os dois. Como um só.
Essa manhã anunciou-se envergonhada, cobrindo a casa isolada com um manto cerrado de nevoeiro. Cigarro apagado num canto da boca, sem fôlego para o reacender, o velho não resistiu ao apelo da luz e deixou-se ficar. Ficou prostrado pelo vinho, pela fadiga e pela vontade de acabar com o insano ritual de luto profundo que nada de bom produzia.
Esforçou-se por arrumar as ideias, por encontrar uma alternativa que lhe preenchesse o buraco negro, o vazio que acabara de criar com aquela forma de pecado. Assim o sentia, quase como uma traição. E aprendera a amar a poesia, não lhe ocorreria renegar a sua tábua de salvação. Flutuava nas palavras, como um náufrago, salvo à força da sua vontade de perecer por uma fada-madrinha. Ou por um anjo, talvez...
Vislumbrou nesse instante, como uma premonição gravada em relevo na espessa tela de neblina, a imagem de um velho sentado numa cadeira a escrever. Poesia, intuiu. De pé, atrás do escriba, a figura elegante, difusa, de uma bonita mulher. A sua. Que lhe acariciava os cabelos grisalhos enquanto lia a emoção no papel.
O rosto do velho iluminou-se num sorriso. Num assomo frenético de energia, abriu todas as janelas da casa de par em par. Depois sentou-se na cadeira e começou a escrever poemas que ela lia, feliz outra vez, livre de todas as dores, dos grilhões que o oprimiam no corpo que abandonou, tombado sobre o parapeito da janela.
Poucos anos depois, alguém juraria ter ouvido palavras de amor, arrastadas pelo vento, sussurradas pelo canavial.
E o uivo distante de um cão, assustadoramente parecido com o daquele que encontraram um dia, morto de fome na cabana onde permaneceria até ao fim. Por não conseguir viver privado da voz que o ensinou a
amar a poesia.
(Hoje é Dia Mundial do quê?)