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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

27
Jan05

EXTREMA FUNÇÃO

shark
ocaso savana.JPG
A jovem médica, acabada de chegar ao acampamento, estacou na soleira da porta. Insectos voadores, enxames, batiam-lhe na pele sem cessar. Indiferente, Ana tentava ajustar o cérebro à multiplicidade de sensações que recolhia. O som da agonia, o cheiro da morte e a visão do inferno, combinados no interior de uma tenda de campanha para se apoderarem dos sentidos e enlouquecerem qualquer pessoa. Ana quase desmaiou.

Engoliu em seco e cruzou a fronteira do horror que a aguardava na sua primeira missão como voluntária. Dois médicos holandeses chocavam entre si, cada um embrenhado em diversas vidas para salvar. Três enfermeiras acudiam-lhes no que podiam. Encolhiam os ombros nas muitas vezes em que davam por falta dos meios indispensáveis para assistir os pacientes que definhavam, resignadas após quase seis meses a lidarem com a situação. Mas não paravam, antes desviavam a atenção para todos quantos lhes parecessem em condições mínimas para sobreviver.
Precisavam de vitórias, de pequenos milagres que lhes aliviassem o fardo permanente da impotência que prevalecia. Seleccionavam com o olhar os moribundos, afastavam-nos para um canto da tenda e concentravam-se nos que aparentavam algumas hipóteses de salvação. Estatística da mais crua, imposta pela necessidade, sobreposta ao coração.

Ana ainda não sabia que em circunstâncias extremas os critérios pré concebidos atingiam o apogeu da flexibilização. Estava chocada, tentava descortinar um ponto de partida para recuperar a lucidez e agarrou-se à ética profissional. Interrompeu o passo apressado de uma das enfermeiras, rosto duro e cansado, indicando-lhe os três pacientes no canto da tenda aos quais nenhum dos clínicos prestava qualquer tipo de atenção. A enfermeira olhou-a com estranheza, deu-lhe para as mãos um velho crucifixo esculpido em madeira local e prosseguiu a caminhada, tabuleiro de metal carregado de quase nada, cheio de esperança porém para outros seres humanos em aflição. A esses podiam dar uma forma alternativa para pararem de sofrer. Aos do canto da tenda, não.

A voluntária atordoada desistiu de reunir forças para protestar contra o que lhe parecia indigno. Observou por alguns instantes o trabalho incansável dos colegas, hesitou. Não se sentia capaz de acompanhar o ritmo insano da equipa, temia atrapalhar. Virou-se de novo para os três infelizes deitados nas macas improvisadas e decidiu avançar nessa direcção.
O primeiro que olhou mais de perto era um homem idoso, cadavérico, olhar baço revirado que anunciava estar muito próximo do fim. Seguiu para o do lado, um jovem soldado atingido no estômago por uma bala perdida. Tentou encontrar-lhe a pulsação e não conseguiu. Cobriu-lhe o rosto marcado pela dor com um lençol e abraçou-lhe as mãos ao crucifixo.

Restava um. Ana decidiu empenhar toda a sua dedicação no cuidado ao infeliz que se apagava como uma vela deixada ao vento de fim de tarde na savana que não voltaria a pisar. Aproximou-se devagar, com o sorriso mais agradável que conseguia produzir. O jovem moribundo, em delírio, fixou nela o seu olhar magoado por todas as dores do mundo, reunidas numa só pessoa.
Ana sentou-se ao lado do rapaz e observou-o, em busca de um diagnóstico alternativo, de um sinal que permitisse uma ténue esperança de salvação. Não o encontrou, antes percebeu que a medicina seria naquele caso uma simples ilusão que perturbaria o paciente na lenta caminhada para o fim.
Passou com todo o carinho um dos braços por detrás da nuca do adolescente, enquanto o acariciava no rosto com a outra mão. Trauteava baixinho algumas canções de embalar cujas palavras ele não percebia mas que pareciam enfeitiçar-lhe a expressão. Olhos negros muito abertos, ele murmurava uma frase que repetia sem cessar e esboçava a custo um sorriso para a loira vestida de branco que o tratava como uma mãe.
Minutos depois, o corpo do rapaz sacudiu um pouco e ele parou de murmurar. Atrás de Ana, a enfermeira pousou-lhe uma mão sobre o ombro e deu-lhe a entender que trataria do assunto a partir dali.
- Já está, agora vá até lá fora e aprecie os cheiros e os sons que o vento da savana lhe traz. Estou certa de que ainda não assistiu com atenção ao ocaso de fogo que a nossa terra tem para oferecer. - Segurou o braço de Ana e puxou-a devagar na direcção da saída.
Fora da tenda, a médica sentiu-se aturdida, incapaz de raciocinar. Apenas lhe ocorria à mente a frase repetida pelo rapaz, permanente, um mistério que pressentia importante de resolver.
- Você ouviu o que o...
- Okosha.
-...o que o Okosha me dizia? Conseguiu perceber?
A enfermeira passeou-lhe a palma da mão pelo rosto e sorriu.
- Ele dizia que este foi o dia em que Okosha, filho de Ngoma, conheceu o anjo que o acompanhará numa maravilhosa viagem para o Céu.
Abraçada a si própria, Ana contemplou o horizonte avermelhado até ao fim. Depois, limpou as lágrimas proibidas e reentrou no hospital de campanha, determinada

Vinte anos passados, Ana permanecia nos quadros da missão. Por cima da entrada da tenda, a figura amarelecida de um anjo, colocada por um familiar de Okosha, assinalava o melhor porto de abrigo para os mais aflitos, como uma estrela, com a luminosidade de um farol cravado no peito da escuridão.
26
Jan05

A DAY AT THE OFFICE

shark
malacartao.gif
Um professor universitário cinquentão. Quando o conheci, há meia dúzia de anos, era um homem orgulhoso, bem falante, com porte de cavalheiro. Sempre que o meu ofício nos juntava, rendia o tempo para trocarmos umas impressões.
Vestia as palavras com a mesma elegância com que cobria o corpo que parecia alvo de alguma dedicação. Parecia um homem realizado, endinheirado, a transbordar de confiança.
Ainda antes da hora do almoço entrou no meu escritório com uma bebedeira descomunal. Cabelo sujo, oleoso e despenteado, barba de quatro ou cinco dias, roupa em desalinho. Olhar vítreo e dificuldade de articulação nas poucas palavras que balbuciou, as bastantes para me confrontar com um novo problema.
Mal conseguiu assinar o documento que preparei para lidar com o assunto. Seria incapaz de escrever por mão própria duas linhas de texto que lhe ditei. E eu, perturbado com a rapidez com que um homem altivo se transforma num destroço em tão curto espaço de tempo, vi-me grego para organizar as ideias e encontrar uma alternativa para descomplicar a situação. Acabei por conseguir. E ele, para meu alívio, cambaleou com sucesso até à porta de saída.

Um gerente da indústria hoteleira, trintão. Casado e com filhos. Vida estável, sem aflições financeiras. Robusto, aplicou desde pequeno a força inesgotável dos que acreditam na subida a pulso. O problema dele, o verdadeiro, era um diagnóstico de cancro. Os outros, os que me competia resolver, afiguravam-se menores e foi nessa perspectiva que os eliminei em tempo recorde da sua lista infindável de preocupações. O efeito bola de neve, as repercussões na vida e na estrutura daquele homem eram devastadoras e eu, sem meios para lhe valer na angústia maior, falei-lhe na esperança, compilei animadoras estatísticas para o mal que nele se instalou. E ele, para meu alívio, conseguiu brindar-me com um sorriso fugaz à saída.

Do meu dia de trabalho seleccionei apenas dois exemplos. Os que mais me impressionaram e cuja descrição caberia numa posta de dimensão razoável.
Às vezes é difícil lidar com o meu dia de trabalho. A única panaceia para o desconforto que estas histórias me provocam, e mesmo essa tem um cunho algo perturbador, é o efeito comparação. Dá-me para pensar que à beira de imensas pessoas, tenho mesmo reunidas todas as condições para me sentir estupidamente feliz.
E sou. Mas às vezes parece que me esqueço e a vida envia-me estes sinais, aqui e além, para me despertar da ingratidão momentânea. É um raciocínio bizarro, não é?
25
Jan05

SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO

shark
connaisseur.jpg
Nos anos que se seguiram ao 25 de Abril, diversas iniciativas inéditas e impensáveis na vigência do regime fascista foram postas em prática pelo Governo e pela população. Uma das que mais me marcaram foi a criação de um grupo vocacionado para ensinar aos putos como eu em que consistia o planeamento familiar.
Malta nova, os professores, reuniam duas dezenas de raparigas e de rapazes e para a maioria foi ali que se aprendeu a verdade nua e crua de como se fazem os bebés afinal.

Sem vergonhas nem falsos pudores, uma professora e um professor aproveitavam as instalações de uma escola primária do bairro para todas as semanas nos ensinarem algo de novo. Mas o manancial de aprendizagem, para lá das técnicas que permitiam evitar uma gravidez indesejada e algumas doenças venéreas pouco agradáveis, consistia no debate que nos era permitido e onde podíamos colocar sem medos as nos maiores interrogações acerca do sexo. E assim, entre outras importantes lições, aprendi a valorizar a importância da primeira vez para qualquer pessoa.

Sonhei com uma primeira vez muito romanceada (na onda Lagoa Azul), considerando a minha condição de macho (que não é suposto atribuírem grande relevância à coisa). Vetada sem apelo a hipótese de me iniciar com prostitutas (ou de algum dia as procurar), como viria a acontecer a muitos dos meus amigos, fiquei entregue à minha capacidade de convencer uma garota a ceder aos meus arremedos desesperados de adolescente em ebulição. Não é tarefa fácil e Deus sabe o quanto me apliquei nessa missão. Entretanto o tempo passava, o resto da malta desenrascava-se e eu ia ficando para trás nas conversas e nas situações fantasiadas que os viris ‘experimentados’ tinham conhecimento de causa para alardear.

Ingénuo, eu buscava apenas as virgens pois era essas as protagonistas ideais para o conceito da coisa tal como a minha mente saturada de devaneios masturbatórios o definiu. Esse seria precisamente o maior obstáculo à minha progressão na aprendizagem que a liberdade me proporcionou. Embora possuísse uma bagagem teórica que me permitia brilhar perante os que sabiam ainda menos do que eu e tivesse desenvolvido alguns ‘couros’ magníficos para utilização no futuro, depressa a teoria se viu ultrapassada pelos acontecimentos e comigo, na prática, nada acontecia digno de contar ao pessoal.
É impossível participar numa conversa acerca de sexo sem trair, em algum ponto do diálogo, a nossa condição de outsiders, a virgindade que para um rapaz de certa idade podia converter-se num rótulo de homossexual. E eu, ansioso mas incapaz de renunciar à ilusão que alimentava, rejeitava oportunidades de ouro com as vizinhas mais afoitas e arrependia-me. Sempre tarde demais para inverter a situação.

E foi assim que a vida me empurrou à bruta para cima de uma fulana bastante avançada no programa e quase cinco anos mais velha do que eu. Uma conquista embriagada no final de uma noite de farra no pino do verão. Teria ultrapassado esse pormenor e encontraria uma forma de embelezar o importante acontecimento com algumas referências pontuais. Contudo, a enorme bebedeira da rapariga e a minha natural inépcia para a função, testemunhadas na cama ao lado pela amiga dela e por um amigo meu que transavam a sua cena a menos de dois metros de nós, resultariam numa pressão que, hoje confesso-o perante vós, me cilindrou.

A minha primeira vez demorou cerca de três minutos.
Três minutos para mim, pois entretanto descobri que ela, algures ao longo desse período, adormeceu como um anjinho. E eu acendi um cigarro, tentei ignorar a festa do lado, e ali fiquei, algo baralhado, em serena contemplação da minha parceira de estreia, gravando na memória um nome, um rosto de bela adormecida e um turbilhão emocional que jamais esquecerei.
22
Jan05

derParty - A REPORTAGEM

shark
Decorreu ontem neste charco a festa de inauguração das postas derFre(u)dianas, num evento que deixa bem claro o carinho que os habitués dedicam ao novo habitante deste oceanário virtual.
Porque é fim-de-semana e nós dois temos muito para arrumar, deixamo-vos com uma pequena síntese, em jeito de reportagem, de alguns pontos altos da cerimónia. Por manifesta falta de espaço não podemos destacar a totalidade das presenças, facto para o qual apelamos à vossa compreensão.
A todas e a todos quantos nos concederam o privilégio da sua presença e animaram este momento importante para o charco, a dupla aquática agradece encarecidamente. É bom poder contar convosco nestas ocasiões especiais.

lanparty.jpgA organização não se poupou a esforços para acolher bem os convidados...

shark.jpgVague, Mar e Sharkinho conversam com Leonel Vicente
disco.jpgO cão do Sharkinho preferia os Boney M, mas o DJ não anuiu.

pop_usagi_l.jpgJoão Pedro da Costa, disfarçado de coelhinho suicida

bruce1.jpgAzul e Cap dançam na pista sob um olhar atento

hi_ha.jpgderFred na bicicleta do Eufigénio a caminho do supermercado para comprar cerveja.
21
Jan05

A POSTA PREGUIÇOSA

shark
É um puto da minha criação, da abençoada paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Benfica. Tem-me amparado muito na caixas de comentários por toda a blogosfera e, para além de ser um gajo muita giro, evidencia os traços comum que unem os filhos benfiquistas da nossa geração (a inteligência, o dom da palavra, a lisura no trato, a elegância no trajar, a formação superior e todas as outras características que já lograram certamente descortinar).

Estava há pouco tempo no Ruínas e de repente viu-se desamparado na fase mais crítica da sua carreira de blogueiro. Esteve bem uns vinte minutos sem soluções à vista. Avistou-o o tubarão e foi logo abocanhado. E agora está aqui, ainda em regime precário (com a bagagem espalhada por todo o lado, com as mudanças a meio gás...), adoentado, cheio de trabalho. Porém, numa manifestação de estoicidade notável, encontrou as energias necessárias para nos presentear com o resultado de intermináveis horas de labor.

Estimadas pessoas amigas: num estilo inconfundível, eis a primeira posta do novo nadador destas águas. O vosso aplauso, o vosso generoso comentário, a vossa delicada palmadinha nas costas para esta estreia abnegada do ex-ruinoso. Convosco, derFred!


QUEREM FESTA?
rockawaygerlabel1full.jpgpostado por: derLazy
20
Jan05

JOBS FOR THE BOYS!

shark
tshirtjp.jpg
O cadáver do Ruínas ainda nem arrefeceu, eu sei. E estamos todos muito contrariados, ok. Mas agora que o João Pedro da Costa interrompeu oficialmente o luto para se fazer anunciar como o oitavo aphixador, eu vejo-me forçado a partilhar convosco que também aqui o charco ficou com um pedacinho (um pequeno calhau) das ruínas.

Amanhã, o novo guest star do Charquinho fará a devida comunicação pois hoje tem estado absorvido a reagir à Comunicação Social.
O derFred, ah pois que eu já o tinha debaixo de olho, vai passar a nadar nas águas quentes do vosso amigo tubarão. Agora digam lá se eu não tive olhinhos e se isto não é uma bela notícia para alegrar o nosso dia blogueiro?
19
Jan05

ESTAMOS ARRUINADOS

shark
coelhomaluquinho.jpg
Qualquer cemitério está cheio de insubstituíveis. Aos blogues também é capaz de se aplicar essa premissa. Mas no meu modesto entender, o fim d’As Ruínas Circulares é um golpe duro na piada desta cena.
E não se trata apenas do espaço que me preencheu horas da existência. O cabrão do puto, o João Pedro da Costa, caiu-me no goto e tornou-se numa das minhas referências da blogosfera. Um blogtrotter, como lhe chamei tempos atrás.

Sem dramatismos, diz ele. Claro, que remédio...
O coelhinho suicidou-se mesmo nas nossas barbas e ficámos todos sem perceber o desenho, apanhados na curva pela decisão do Ruinoso-Mor.
Estou inconsolável e estes últimos dias já não andavam a correr muito bem.
Vale-me a promessa de contar com ele no dia 19 de Março, no encontro alentejano, a minha oportunidade de o fazer pagar caro por esta deserção.

A minha blogosfera ficou muito mais pobre. A vossa também.
18
Jan05

A MÚSICA PRÓS BEIJINHOS NA BOCA

shark
ilusao2.jpg
Evito abordar certos assuntos por temer a associação dos mesmos a alguma exibição patética de nostalgia. O tema que move esta posta enquadra-se descaradamente nessa gelatinosa categoria. Porém, quando me acorre à ideia por algum motivo essa recordação de tempos agradáveis em que me senti feliz, não me sinto deprimido, preocupado ou mesmo melancólico. Ora, se falo de assuntos que me fazem sentir feliz agora porque hei de fugir dos que me agradaram no passado? Nunca por parecer mal, concluo.

O meu tema para este início de conversa são os slows. É verdade, aquelas músicas para dançar agarradinhos que ninguém dispensava nas festas e nas discotecas do final da década de setenta e até meados da que se seguiu.
Confesso-me um incondicional dessa onda que a malta com menos vinte anos do que eu não chegaria a conhecer, salvo raras excepções. Mas não me interpretem mal, quando era puto também não dispensava a malhas mais rasgativas da altura e até de décadas atrás. As matinés do Porão da Nau, do Rock Rendez Vouz ou mesmo do Dois (2001, no Autódromo) faziam-se de sons a abrir, sem desdenhar uma fixe dos Doors, o Cocaine versão Eric Clapton ou as bandas clássicas do rock sinfónico e do mais puro FM norte-americano, a par com The Police ou os Ramones. Sempre a abrir para abanar a carola até o som entrar pelos olhos, pelos ouvidos e pela pele.

A parte dos olhos é que nos recordava a indispensável hora em que o gajo dos discos (por norma um ganda baril) entrava com a sequência demolidora de música para os beijinhos na boca. Era o momento de todas as decisões. Uma aposta mal feita conduzia a um final de tarde a ver navios, envergonhado perante os amigos mais certeiros na opção. E era também a prova de fogo para os diversos papagaios que faziam peito até se escapulirem, mal a pista abrandava no ritmo e na luz. Zarpavam para o balcão como uns tiros e safavam-se os que ficavam, com muitas miúdas disponíveis para embalar ao ritmo do Bob Seger, do John Waite ou mesmo dos Bee Gees.

Era um momento especial para todos nós, putos dos treze aos dezassete, ansiosos por novas emoções e livres da manta tenebrosa, moralista, que cobrira o sexo na vida dos pais e, por causa da sida, ensombra as perspectivas dos mais novos também. A minha geração escapou na adolescência a uma série de papões e assumiu com naturalidade o ritual de apreciação de cheiros, de texturas de pele e de jeito para a palheta (quase tão determinante como uma cara bonita ou uma indumentária em condições). Essa prova de compatibilidade entre químicas, esse roça-roça discreto que nos moldava o desejo e ensinava a lidar com os limites ou as manias do nosso par, só os slows podiam proporcionar com tanta descontracção. Sem medos de irmãos e de pais que pudessem aparecer de surpresa ou de namorados mais estúpidos, os que preferiam soltá-las sozinhas às feras do que vencerem a falta de jeito ou de vontade para curtir e dançar.

Sinto-me um felizardo pela conjuntura que me favoreceu. E gostei muito desses dias, como adoro os que estou a viver à medida da minha vontade, dos condicionalismos normais de qualquer existência e das preferências que encaixam na minha casca pré-quarentona e perfeitamente operacional. Prestes a atingir os quarenta, livrei-me da guerra colonial, safei-me da tropa por uma contingência estatística (reserva de incorporação) e as batalhas que enfrento pela sobrevivência são mais brandas e menos dramáticas do que as disputadas pelos meus pais e, acima de tudo, pelo meus avós.
Concluo por isso que pertenço a um grupo de sortudos, na maioria, e sinto-me compelido a partilhar alguns momentos especiais que possam (ou não, estou-me nas tintas) interessar a quem os viveu e aprecie evocar.
Da mesma forma que retive na memória os episódios marcantes que, de alguma forma, contribuíram para chegar ao homem que sou, sem merdas, e os divulgo para vos ajudar a compreenderem-me melhor, assumo que as idas à discoteca nestes tempos não me entusiasmam tanto como quando, por entre a berraria que nos saltitava a conversação, surgia a oportunidade de ouro para sentir os braços suaves e gentis em volta do pescoço ou os contornos das ancas e das costas de uma pessoa tão ávida de emoções fortes como eu. Ou apenas para conversar um bocado e descobrir o romance num discurso inflamado ou na atracção que sempre se denuncia pelo espelho do olhar, ao som do Stairway to Heaven ou de outro clássico qualquer...

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