No lado de cá
Nunca primei pelo optimismo, admito. Perante alguns factos que me chocam opto sempre pela preocupação inerente às minhas previsões (quase sempre) catastrofistas.
Quando tento entender o funcionamento desse mecanismo interno que me conduz para os receios pelo pior, apenas um dos desfechos possíveis em qualquer situação, percebo que a lógica assume um papel relevante.
Essa lógica é a que me diz ser absurdo não vaticinar um pesadelo quando, à face das evidências, estão reunidos todos os ingredientes para o mesmo se verificar.
Lampedusa, uma localidade italiana que bem dispensaria a associação sinistra impossível de evitar, é apenas uma face visível dessa tragédia que está a acontecer com cada vez maior frequência, o êxodo em massa por parte das populações aterrorizadas e famintas de boa parte do hemisfério sul.
E na minha visão pessimista do futuro, a fortaleza em que se estão a transformar muitos países ocidentais da zona mediterrânica mas também nos EUA no que respeita à sua fronteira com o México, por exemplo, vai progredir para uma barreira instransponível futura que, na prática, assumirá esta vergonhosa divisão do planeta em dois.
Nunca conheceremos a verdadeira dimensão deste horror, nos números como nos contornos tenebrosos da jornada dos emigrantes africanos no mar feito estrada para um paraíso como naturalmente o entenderão.
É desumano, é assustador e, face à reacção hostil que acaba por marcar a actuação das autoridades nos países confrontados com o problema, é descaradamente cruel.
É de pessoas que se trata. Com peles diferentes, com culturas distintas, com o azar de terem nascido no local e no tempo errados para quem ambicione a felicidade de coisas tão simples como uma terra em paz. Mas são gente, gente que arrisca a morte com filhos nos braços depois de pagar fortunas por uma viagem sem retorno nas piores condições que conseguimos imaginar.
Essa é a realidade tal como está a acontecer e envolve números na casa das dezenas de milhar, todos os anos. E não estamos a falar de gnus.
O dilema com que deste lado dourado do mundo, por estranho que isso possa soar, nos confrontamos passa pela luta interna entre o humanismo elementar que nos impele a acudir a estas pessoas em aflição, com culpas no cartório para a Europa colonialista, e o pragmatismo financeiro dos que têm optado pela via da fortificação, no sentido de impedir o afluxo de gente de fora que custa dinheiro só pelo facto de ter que se reparti-lo.
Numa balança com um dos pratos ocupados pelo dinheiro já sabemos para que lado os pratos, as decisões, penderão, somando-lhe a xenofobia, o racismo, a ganância, a desumanidade de uns quantos que, quando todos em sintonia, são demasiados e até há exemplos de como conseguem chegar ao poder em eleições nestas democracias cada vez mais bizarras.
É esse, sem dúvida, o rumo que italianos, espanhóis, turcos e todos quantos, na Europa, sentem mais de perto e com maior intensidade o problema têm optado por seguir. Mais vigilância nas fronteiras, mais repressão dos clandestinos, repatriamento na ponta da língua para a maioria dos que conseguem capturar com vida.
É essa a barreira intransponível que estamos todos a construir, passo a passo, até à tal visão pessimista do futuro como o prevejo para um mundo inteiro em convulsão. Um planeta armado até aos dentes e dotado de tecnologia superior, a norte, com os seus recursos empenhados na manutenção dessa fronteira global pouco acima do equador. Interdito para todos aqueles que, dessa forma, serão abertamente declarados inferiores.
E um outro planeta, a sul, faminto e desesperado, sem recursos ou com os mesmos esgotados pelas alterações climáticas ou pela rapina ocidental, a alimentarem os ódios que se converterão naquilo a que chamaremos terrorismo mas não deixará por isso de ser na realidade uma luta pela sobrevivência, a exigência de um equilíbrio que, por este caminho que lhes oferecemos, é fácil concluir dos dois lados da barricada que só à bruta poderão algum dia alcançar.