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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

27
Abr12

JÁ O MEU CÃO ERA COM AS ALMOFADAS DO SOFÁ...

shark

Dava gosto vê-lo acariciar com todo o empenho aquele objecto do seu carinho, puxando-lhe o lustro para brilhar ainda mais ao seu olhar embevecido. O cromo e os seus cromados, completamente moldados em peça única, o meu vizinho que raramente utilizava aquele seu amor como meio de transporte mas antes como um altar.

E como era grande a sua fé, balde no chão, pendurado no ombro o pano mais suave que conseguia encontrar e muita, muita dedicação ao seu magnífico automóvel como novo porque passava os dias ali, coberto por uma capa, protegido dos olhares ciumentos dos outros que só lhe punham a vista em cima na presença do dono, aos domingos a seguir ao almoço, por volta da hora a que tinha início o relato radiofónico dos jogos do campeonato nacional.

 

Por vezes ficava entretido a observá-lo à distância, estupefacto com a meticulosidade da busca por pequenas sujidades que parecia sentir como imperfeições inadmissíveis naquela luminosidade cristalina de uma pintura metalizada.

Ajoelhava em serena contemplação e depois mexia aqui e mexia ali e depois deitava-se e espreitava o chassis em busca de qualquer sinal de corrosão que combatia com a ferocidade de um leão, o pano embebido num produto caríssimo e só para profissionais como o amigo que o obtivera às escondidas do patrão, dono da oficina que aquele vizinho enfrentava com a ansiedade de um pai preocupado na sala de espera do hospital.

Estava sempre tudo bem, seis meses e trinta ou quarenta quilómetros depois, e ele lá estacionava o carro no lugar que ninguém lhe disputava. Até porque o marcava com quatro pesados bidões que arrastava a custo, o lugar cativo num ponto ao alcance da vista na sua janela.

 

Espantava-me aquela devoção num homem com aspecto abrutalhado, visivelmente obcecado com aquela máquina que era também o objecto de culto do fulano.

Limpava tudo de fio a pavio, os berros dos locutores da bola a ecoarem em redor, o mundo inteiro parado em redor daquela história de amor que era a única que lhe conhecia.

 

Apesar de morarmos no mesmo edifício há anos e de muitas vezes ter observado aquele vizinho na dedicação de tempo e de carinho para com o seu coche real nunca o vi tocar o rosto da vizinha, ou tentar sequer, tal como nunca lhe vi um sorriso como o que lançava ao carro em jeito de despedida, já perto do pôr do sol, quando finalmente cobria com a capa protectora o apelo sedutor de tão expressivos faróis.

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