JÁ O MEU CÃO ERA COM AS ALMOFADAS DO SOFÁ...
Dava gosto vê-lo acariciar com todo o empenho aquele objecto do seu carinho, puxando-lhe o lustro para brilhar ainda mais ao seu olhar embevecido. O cromo e os seus cromados, completamente moldados em peça única, o meu vizinho que raramente utilizava aquele seu amor como meio de transporte mas antes como um altar.
E como era grande a sua fé, balde no chão, pendurado no ombro o pano mais suave que conseguia encontrar e muita, muita dedicação ao seu magnífico automóvel como novo porque passava os dias ali, coberto por uma capa, protegido dos olhares ciumentos dos outros que só lhe punham a vista em cima na presença do dono, aos domingos a seguir ao almoço, por volta da hora a que tinha início o relato radiofónico dos jogos do campeonato nacional.
Por vezes ficava entretido a observá-lo à distância, estupefacto com a meticulosidade da busca por pequenas sujidades que parecia sentir como imperfeições inadmissíveis naquela luminosidade cristalina de uma pintura metalizada.
Ajoelhava em serena contemplação e depois mexia aqui e mexia ali e depois deitava-se e espreitava o chassis em busca de qualquer sinal de corrosão que combatia com a ferocidade de um leão, o pano embebido num produto caríssimo e só para profissionais como o amigo que o obtivera às escondidas do patrão, dono da oficina que aquele vizinho enfrentava com a ansiedade de um pai preocupado na sala de espera do hospital.
Estava sempre tudo bem, seis meses e trinta ou quarenta quilómetros depois, e ele lá estacionava o carro no lugar que ninguém lhe disputava. Até porque o marcava com quatro pesados bidões que arrastava a custo, o lugar cativo num ponto ao alcance da vista na sua janela.
Espantava-me aquela devoção num homem com aspecto abrutalhado, visivelmente obcecado com aquela máquina que era também o objecto de culto do fulano.
Limpava tudo de fio a pavio, os berros dos locutores da bola a ecoarem em redor, o mundo inteiro parado em redor daquela história de amor que era a única que lhe conhecia.
Apesar de morarmos no mesmo edifício há anos e de muitas vezes ter observado aquele vizinho na dedicação de tempo e de carinho para com o seu coche real nunca o vi tocar o rosto da vizinha, ou tentar sequer, tal como nunca lhe vi um sorriso como o que lançava ao carro em jeito de despedida, já perto do pôr do sol, quando finalmente cobria com a capa protectora o apelo sedutor de tão expressivos faróis.