COM CHAVE DE OURO
Por vezes só nos apercebemos da relevância de alguns momentos quando mais tarde nos confrontamos com algum símbolo, algum gatilho para a lembrança de sensações que revivemos com tanta nitidez que se torna impossível confundi-las com episódios passageiros ou experiências menores.
Algumas dessas realidades marcantes podem funcionar como chaves do cadeado de um qualquer baú da nossa tola onde enfiamos tudo aquilo com o qual não conseguimos lidar, pelo menos com a distância relativa que sempre acreditamos o tempo proporcionará.
E é quando nos vemos perante a inevitabilidade de aceitar o impacto de determinadas emoções que julgávamos esvaírem-se em amnésia ao longo do caminho que, quase embaraçados, reconhecemos as memórias e as pessoas que perduram uma vida inteira e engolimos em seco quando o coração dispara e tentamos fingir que não percebemos porquê.
Julgo ser normal que tentemos arquivar no mesmo ficheiro a totalidade, coisas boas e coisas más, de uma experiência que por algum motivo sabemos não ser possível de repetir. Chamam-lhe mecanismos de defesa, estas tentativas vãs de converter em arquivo morto tudo aquilo que possamos sentir como um desgosto, uma desilusão, uma derrota. E por norma não defendem de coisa alguma, expostos que estamos às esquinas da vida nas quais podemos chocar de frente com a tal realidade incómoda que a preguiça ou algum receio não assumido ou seja o que for nos levou a encaixotar, em local recôndito, para evitar perturbações desnecessárias.
O problema está em parte contido nessa definição de prioridade que torna o conceito de necessidade numa coisa invulgarmente flexível: apanhado de surpresa, o tal mecanismo de defesa funciona como os alarmes dos carros quando ligados a uma buzina roufenha e simplesmente não cumpre o seu papel dissuasor de lembranças perturbadoras.
Logo à partida, esse sistema de vigilância instalado para impedir o acesso involuntário a coisas que preferimos discretas num canto tem um desempenho directamente proporcional à firmeza de intenções de quem o montou. Quando queremos mesmo encerrar o assunto é como se tivéssemos a segurança pessoal do Presidente Obama de sentinela à porta, mas se apenas tentamos varrer para debaixo do tapete aquilo que nos possa afectar em dada altura é como se a combinação do cofre fosse deixada num post-it cheio de cores berrantes para prender a atenção da pessoa.
Não existe uma defesa para as defesas feitas de papel, construidas apenas para criar uma barreira artificial de olhos que não vêem coração que não sente e deixá-la à mercê do vendaval que pode ser provocado pelo agitar das asas de borboletas no Japão ou pela simples evocação de emoções tão fortes que até uma palavra, um gesto ou um som podem fazer explodir de repente na mente desguarnecida do cidadão.
É essa a inevitável provação que espera os incautos fiados na virgem do esquecimento destinado às situações e pessoas sem rasto e mesmo sem rosto mas que afinal de pouco ou nada vale quando estão em causa os tais momentos que perduram, latentes, na essência do que valeram e na excelência do que continuarão a valer.