A POSTA QUE A SORTE É DALTÓNICA
A nostalgia pode muito bem estar a tomar conta da ocorrência, mas eu gostava imenso daquela cena dos furos em que a escolha do furo certo podia implicar a libertação de uma bolinha com a cor certa, a da tablete colossal como parecia a quem não a podia comprar de outra forma. Claro que a bolinha prateada era agulha num palheiro de bolas verdes ou de outras, azaradas, que só nos permitiam um prémio de consolação doce que não bastava para compensar o amargo de boca no olhar para aquela que parecia sempre destinada a sair aos outros.
E claro que na essência as máquinas modernas que não se furam mas gira-se a manivela para sair sempre uma bola de plástico com um papel da cor dos chocolates mais farsolas do mostruário tentador são diferentes mas o resultado final acaba por ser o mesmo, a fava multiplicada por cem e o brinde a sério reservado, às tantas, para outro azarado convicto que nesse dia entende baralhar a sua estatística pessoal.
Eu preferia as caixas dos furos, confesso. Logo à partida porque inspiravam um ritual de conexão entre fornecedor e cliente, um momento mágico que nascia da cautela do dono da taberna ou do café para impedir que os mais atrevidos furassem mais do que pagavam a ver se no meio da confusão podiam reclamar a mais favorável das bolinhas às cores saídas mas parecia brotar daquela ligação imediata entre o furador esperançado e o comerciante que tomava partidos e torcia, porque lhe era igual ao litro.
É pá, calhou-te outra vez um rebuçado! Ainda há bocado veio a chata da Ernestina e tirou uma Comacompão…
Logo essa, a minha preferida e que se esteve alguma vez próxima de um pão foi de passagem para o seu destino solitário no meu interior. Aquilo doía fundo, mas uma pessoa acreditava-se capaz de vencer as ernestinas do mundo inteiro na próxima, naquele furo de sorte que um dia, pela insistência, haveria de acontecer.
As novas máquinas automáticas não permitem a batota e retiram à coisa uma parte da sua mística, pois o dono não precisa de controlar a situação excepto quando a moeda encrava.
Mas o dono da papelaria, mesmo com a atenção repartida pelos apostadores do euromilhões a quem ia registando as fezadas, arranjava sempre um instante para o esgar de contrariedade por ter calhado outra vez um chocolate minúsculo de entre os Milka gigantescos reservados para os mais felizardos na escolha feita pela máquina (outra das perdas que o progresso implicou).
E às vezes até contava a história da senhora do cinco rés-do-chão que tinha tirado um chocolatão que os nossos olhos nunca viam sair a alguém.
O senhor da papelaria, marido, pai e avô, tentava à sua maneira recriar o tal ritual do tempo jurássico das caixas dos furos, parecia um tipo porreiro.
E tenho a certeza de que hoje iria torcer o nariz quando lesse na sua banca a notícia do homem, marido, pai e avô que ontem apareceu morto na Bobadela junto à linha do comboio, por entre o seu olhar de esguelha para o tom do papel calhado em sorte a alguém.
Mas foi mesmo ele a quem saiu desta vez a pior cor.