O ÚLTIMO BASTIÃO
No dia previsto voltaram a chamá-lo bem cedo para cumprir a sua função. Calhava-lhe sempre a mesma galáxia e o cargo que ocupava não permitia alternativas, competia-lhe assegurar a desinfestação dos planetas abandonados à pressa durante a devastadora guerra civil que alastrara às colónias distantes e tornara para si inabitáveis esses calhaus no espaço que tanto amaldiçoava, depois de infestados de formas de vida estranhas, aberrações como as entendia, nascidas do nada a partir do que restara, dos escombros de mundos antes habitados aos milhões pelos seus iguais.
Equipou a nave com os instrumentos mais letais do seu arsenal de desinfestação planetária, determinado a perder ainda menos tempo nessa segunda deslocação ao terceiro planeta de um diminuto sistema solar, numa galáxia remota, onde reinava a monotonia das formas de vida inferiores, criaturas medonhas que se propagavam pelo planeta inteiro a um ritmo que o surpreendera na primeira deslocação, pouco tempo atrás.
Nada restara do que antes povoara o planeta quando a guerra finalmente acabou, apenas destroços pulverizados por armas de destruição em massa que ambas as partes não hesitaram em utilizar, deixando inúmeros planetas sem condições para neles se restabelecerem os grupos colonizadores de mundos como outrora.
Mundos que o lembravam agora de tempos que todos desejariam esquecer e ele encarregado da respectiva manutenção, contrariado e quase sempre desleixado ao ponto de permitir que a vida voltasse a aparecer, como uma praga, e ocupasse o espaço que lhes pertencia há muitas gerações.
Era longa a viagem e raramente regressava a casa a horas decentes para jantar, mas a sua espécie era reconhecida pela paciência e em nada o perturbava o caminho a percorrer mas o mesmo não podia dizer do nojo que lhe provocava a bicharada que encontrava, aqui e além, na sua zona de intervenção.
Mantinha-se entretido com a preparação do equipamento mais a batota que fazia para enganar os seus superiores, boa parte da carga despejada pelo espaço para encurtar a estadia nas lixeiras que deveria cobrir com a substância que eliminava toda a matéria orgânica, deixando as terras livres para a futura reocupação.
Claro que nunca resultava por completo a operação e isso obrigava-o a repetir em centenas de locais os mesmos procedimentos, a rotina insuportável da aniquilação de novas hordas de seres bizarros que progrediam a partir do quase nada que deixava para trás.
Parou a nave a uma distância prudente para evitar qualquer onda de choque ou os detritos que o trabalho pudesse provocar e ligou o monitor para acompanhar, por ordem do concelho científico, a evolução das espécies que pudessem, eventualmente, ocupar os planetas na sua ausência. Servia, segundo lhe diziam, para aperfeiçoarem ainda mais a eficácia de desinfestações posteriores.
Quase saltou na cadeira quando distinguiu uns bichos muito diferentes dos restantes no comportamento e concentrou nesses a sua atenção.
Assistiu intrigado à evolução daquelas criaturas alienígenas e acabou por se esquecer de jantar, estupefacto com aquela mutação de uma pequena parte da bicharada que conseguira proliferar após a sua primeira visita ao local.
Quando lhes percebeu a capacidade de comunicação entre si desligou os gravadores, atemorizado pelas consequências que a sua negligência assim revelada pudessem acarretar.
Deixou-se ali ficar enquanto se desenvolviam e depressa tomariam de assalto todo o planeta, exterminando aos poucos todas as espécies que os rodeavam, ameaçadoras ou não, e (isso deixou-o petrificado) espalhando igualmente a destruição entre si.
Foi essa semelhança de comportamentos que o estarreceu. Viu-se obrigado a tomar uma decisão e dispunha apenas de duas opções, cumprir a sua função ocultando os factos aos seus superiores para salvar o emprego ou virar as costas e fazer de conta que nada daquilo existia, regressar com os depósitos vazios sem despejar naquele planeta a condenação anteriormente mal sucedida.
Mas agora a vida era outra ali e ele revia o seu povo naquelas criaturas pequenas que para seu espanto começaram até a enviar engenhos voadores para o espaço exterior.
Foi aí que adivinhou o pior, descobrirem-no ali e estabelecerem qualquer espécie de comunicação que o pudesse de forma insidiosa cativar.
Atordoado, entendeu partir por não possuir a frieza necessária para levar a cabo a sua missão, deixando-os viver naquela esfera azul nos confins sem lhes denunciar a existência (o que obrigaria a um relatório que demoraria mais de um milhão de translações daquele planeta a terminar).
Acabou por despejar a carga num gigante gasoso do mesmo sistema solar e manteve-se ocupado no caminho de volta a treinar uma aparência normal quando desse o trabalho por concluído no final desse turno enquanto tentava imaginar futuros desenvolvimentos para a evolução daquela espécie perturbadora nascida dos resíduos da sua, tão diferente na aparência mas tão parecida na estupidez como ele agora se encarregara de provar ao decidir poupá-los à destruição total.
Tentou também apaziguar o desconforto que lhe provocava a noção de que não tardaria a ter que regressar ao pequeno mundo azul e enfrentar de novo o dilema de acabar ou não com a existência de mais uma fornada de indesejáveis num terreno que teriam de ocupar um dia.
Decidiu adiar-lhes o fim (já tinham existências tão efémeras, coitados...) pois sabia que não enviariam colonos enquanto ele não garantisse a habitabilidade do planeta e foi nisso que pensou enquanto ceava à luz das três luas de Mandir.
Ainda nem tinha acabado a refeição quando viu no comunicador a expressão enfurecida do chefe de departamento, acabada de receber a informação da proveniência de uns tais de “humanos” cujas naves se aproximavam como uma praga para fazer tombar o último bastião de resistência contra a colonização forçada, brutal, de mais um sistema solar.