A POSTA NA MECÂNICA DA COISA
Tempos atrás um dos mais ilustres rostos da alta finança mundial concebeu um gigantesco embuste, embarretou pessoas, empresas e até nações.
Foi um safanão terrível na credibilidade do próprio sistema financeiro e o tal ilustre acabou dentro e provavelmente lá acabará os seus dias como castigo para o dispendioso pecado que cometeu.
Boa parte desta aflição, desta crise generalizada a uma escala cada vez mais global, teve início nessa Dona Bronca americana que o subprime afundou. Tem a ver com a tal confiança de que o sistema necessita para poder funcionar conforme previsto: sacar cada vez mais lucro com cada vez menos escrúpulos quanto aos meios e, se possível, de forma discreta o bastante para evitar bolsas credíveis de contestação que possam emperrar os mecanismos fazedores de fortunas que são os fins.
A coisa vista assim soa tenebrosa. E é. E os factos comprovam.
O maior sarilho que Madoff arranjou, dinheiro perdido a malta (“aquela” malta) recupera, foi ter virado os holofotes para uma debilidade do sistema que a populaça desconhecia e o deixa em maus lençóis: a ingenuidade.
De repente ficamos todos a saber que no céu onde o dinheiro a sério acontece, mesmo que para isso a vida dos pelintras cá em baixo se torne num inferno, há diabinhos capazes de aldrabarem as contas para inventarem rendimentos. E há anjinhos capazes de permitirem que isso aconteça de forma impune diante dos seus narizes que, presumia-se, teriam faro de perdigueiro para os malabarismos contabilísticos.
Mas se calhar o sistema estava constipado no sector da fiscalização...
É aqui que a crise a sério começa, quando os analistas descobrem aos poucos as incongruências de um sistema ao qual se destapam também as promiscuidades como a de existirem nas agências de rating ligações a empresas que compram a dívida pública “tabelada” pelos isentos seus associados.
Nenhum sistema, por bem montada que seja a marosca, resiste a tanta devassa das suas fraquezas quando a confiança dos investidores (as bolsas de valores, por exemplo, são muito sensíveis à prudência excessiva) é um dos pilares da sua actuação.
O efeito bola de neve transforma-se numa avalancha de ameaças para estas peças mal oleadas do mecanismo e num instante passamos da constipação fiscalizadora ao motor gripado por lhe falharem as correias de distribuição.
A dúvida instalada depois do escândalo Madoff alertou até os maiores beneficiários da oficina de fortunas para a necessidade de, talvez tarde demais, renunciar à batota e levar o mecanismo à inspecção com a regularidade e o rigor devidos.
O problema é que a dúvida, quando estão em causa as descidas bruscas das classes médias, faz arrefecer os vários entusiasmos indispensáveis para tudo funcionar na perfeição, nomeadamente o consumista que, por sua vez, é a ignição do comercial e de repente temos países inteiros a ligar para a assistência em viagem da divina misericórdia (esta última o sistema não engloba de série).
Por outro lado, quando duvidamos pode dar-nos para questionar realidades que antes nem se equacionavam.
Por exemplo: se o Madoff conseguiu enrolar tantos durante tanto tempo e o subprime com bicho apodreceu maçãs tão lustrosas como a Islândia, quem nos garante que um dia não estaremos a olhar para o passado que nos mandou para a penúria conscientes de que tudo isto da notação financeira era afinal mais uma vigarice de topo que ninguém, sobretudo os lorpas dos políticos que lhe dão o beneplácito e que são enrolados a torto e a direito pelas verrugas do sistema financeiro, topa hoje nessa condição?