A POSTA EMPRESÁRIA EM NOME INDIVIDUAL
Foto: Shark
Um dos sinais mais visíveis da entrada de Portugal na Europa dos ricos (os gregos devem fartar-se de rir desta) foi a súbita proliferação dos veículos comerciais ligeiros, os populares diesel com dois lugares que renovaram num ápice a frota de velhas carrinhas com bancos rebatidos nos dias úteis, com os putos a viajarem deitados nas caixas de carga dos carros de trabalho que também eram de passeio se a polícia não os topasse nessa ilegalidade óbvia.
Os comerciais ligeiros passaram a ser o símbolo do dinamismo da economia agora animada pela entrada de milhares de cidadãos no mundo dos negócios, no grande boom dos empresários em nome individual que podiam agora adquirir um veículo a gasóleo que dava um jeitão para ir à terra no fim-de-semana, beneficiando da poupança do Imposto Automóvel nos veículos de mercadorias e sem terem que optar por uma Ford Transit ou outro matatu(*) dessa dimensão.
As contas dessa altura eram feitas com base no pressuposto de que a prestação do Aluguer de Longa Duração (ALD) se pagava a si própria apenas com base na poupança resultante da diferença de preço entre combustíveis.
A malta fazia as contas aos quilómetros que percorria habitualmente, substituindo o preço do litro da gasolina pelo do diesel e depois somava-lhe a estimativa dos quilómetros necessários a mais, no âmbito do negócio em part-time e respectiva expansão, para a prestação mensal ficar coberta por inteiro nessas contas iluminadas pelo brilho no olhar de quem podia pela primeira vez sonhar com um carro novo, mesmo com uma rede separadora entre os lugares propriamente ditos e o tal espaço versátil misto passageiros/carga.
Este deslumbramento pelintra, cuja euforia levou muitos, burros (como este vosso amigo), a abandonarem bons empregos para embarcarem na aventura mercantil traduziu-se também no aparecimento dos centros comerciais que albergaram os sonhos dos lojistas maçaricos e acrescentaram à prestação do carro mais um ror de despesas fixas que a banca, sempre solícita nesse expediente, não tardaria a suportar em prestações suaves sob a forma de créditos pessoais “para obras em casa” que depressa começaram a apertar os calos empresariais e ainda nem tinha começado o descalabro financeiro que aterrou nos colos de uma multidão alimentada pela ilusão de uma vida melhor e depressa.
Comerciais muito ligeiros
Entretanto, os comerciais ligeiros envelheceram antes do final do contrato de ALD e parte dos lucros obtidos pelos comerciantes júnior seriam investidos na diferença entre um chasso desvalorizado à bruta pela própria lei da oferta e da procura e um carro novo a estrear com imensa cavalagem e prestação a condizer, mesmo com um generoso valor residual deixado para o fim que nunca acontecia.
O fim, mas o da ilusão, acabaria por chegar para muitos com o súbito desaparecimento dos bólides às mãos das empresas contratadas para os recuperarem depois de várias prestações baterem no poste.
E com a aflição da esmagadora maioria desses pequenos empresários em nome individual falidos começaram a diminuir de forma drástica as vendas dos diesel dois lugares enquanto aumentavam na proporção os trabalhadores precários, aqueles que aceitavam quaisquer condições para poderem pagar as dívidas às instituições financeiras e ainda conseguirem honrar compromissos como a renda da casa ou a escola dos filhos.
Antes da entrada na terra da fantasia milionária, quando a classe média se concentrava na procura dos melhores e mais estáveis empregos e depois acrescentava o tal part-time na economia paralela, a tal dos bancos rebatidos nas carrinhas, o lucro era limpo, livre de encargos, e a gestão familiar era feita com base na poupança desse dinheirinho a mais que dava para as férias e outros luxos menores.
Mas depois de reconvertidos à máquina montada para facilitar o endividamento, a certeza de um permanente florescimento da economia que toda a gente acreditou possível, os portugueses (como outros europeus) alteraram o paradigma e as contas passaram a ser feitas em função de estimativas de crescimento, as falsas expectativas que tornaram a poupança num desperdício de tempo para quem queria ter já a bochechos aquilo que poderia ter depois sem alcavalas e toda a gente em redor fomentava, o Estado também – por muito que não fosse esse o discurso institucional -, esses investimentos na qualidade de vida muito acima do que os rendimentos permitiriam, mesmo que jamais acontecesse uma crise que os pudesse comprometer.
Mas está a acontecer.
E mais uma vez a frota de veículos de mercadorias começou a ser renovada em consonância...
(*) Os matatus são carrinhas de nove lugares do tipo Toyota Hiace que prestam uma espécie de serviço alternativo de transporte público em vários países africanos.